Amigos do Fingidor

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Antísthenes Pinto, inventor e artesão 4/4

Zemaria Pinto

 

VI

Adentremos agora no território sombrio da prosa de ficção de Antísthenes Pinto. Guardem bem este adjetivo: sombrio – ele qualifica com exatidão o mundo ficcional das novelas e romances de Antísthenes. Não se trata de um juízo negativo de valor, mas de uma metáfora – as sombras da prosa de ficção de Antísthenes vão se revelar, ao final, as vésperas da luz.

Em 1965, com a publicação de Chavascal, o autor envereda pela prosa de ficção. Chavascal passa-se em um seringal, nas cercanias de Terra Clara. Não sei se devo falar em realismo, em função das fortes tintas com que Antísthenes colore aquele painel. Expressionismo, talvez, pois a realidade é de tal forma realçada, quero dizer, exagerada, de forma intencional, que pouco sobra de humanidade naqueles personagens: monstros morais, deformados interiormente – novamente, Antísthenes, assim como na poesia, não faz concessões. Chavascal é o tipo ideal daquilo a que os críticos mais apressados costumam rotular de literatura regionalista. Mas o que é mesmo literatura regionalista? Sempre me pareceu estranha essa denominação – Alfredo Bosi, por exemplo, chama de regionalista tudo o que se opõe ao urbano: do conjunto da obra de Guimarães Rosa a A Madona de Cedro, do urbano Antônio Callado (BOSI, p. 426-428). A brasilianista Luciana Stegagno Picchio, na sua História da Literatura Brasileira, age da mesma forma (PICCHIO, p. 402-404). Mas, de modo geral, regionalista é sinônimo de literatura fora do eixo daquilo que nós chamamos mais atrás de “centros culturais mais avançados do país.” Diga-se que o termo não está registrado nos dicionários especializados em literatura. Quanto aos dicionários comuns, o Houaiss diz: “caráter do texto literário que se baseia em costumes e tradições regionais, e que tem como uma de suas características o uso de linguagens locais.” O Aurélio é mais conciso ainda: “caráter da literatura que se baseia em costumes e tradições regionais.” Ou seja, não fazendo distinção com o urbano, os dicionários comuns corroboram a ideia geral – o que está fora do eixo é regionalista. Podemos mesmo dizer que existe um forte preconceito, que nega aquele sábio conselho de Tolstói: “Escreve sobre tua aldeia e estarás escrevendo sobre o mundo.” Uma novela de Tolstói, uma peça de Tchekhov ou um romance de Dostoievski são universais, mesmo que se passem numa minúscula aldeia perdida da Sibéria. Por que então um conto amazonense será sempre regionalista?

Terra firme, publicado em 1970, é um romance de linguagem peculiar: frases curtas, sempre buscando construir imagens na mente do leitor, e personagens enfurecidos, assoberbados daquela ira inexplicável.

 

A poronga na testa, o saco de borracha nas costas, o terçado afiado na mão. Madrugada parada. Lá um e outro esturro de onça. Chegou na primeira seringueira com o coração em tempo de pular do peito. Em outras estradas o corte tinha seguramente começado. Os dedos adormecidos em contato com as tigelas no fundo do saco. Riscou a faca na casca da árvore e o leite desceu cheiroso. Absorvia pensamentos infantis, mas tinha pressentimentos adultos, ruins. Tirou a farinha do saco e comeu como se quisesse se empanzinar. Ouviu um grito perto, respondeu. Não demorou chegar por trás dos arbustos o Marçal. Era o seringueiro mais perto de sua estrada. Gosta dele, se bem não tivesse motivo algum para gostar de alguém. (1982, p. 119)

 

Ainda há pouco, a respeito dos personagens de Chavascal, falei em “monstros morais, deformados interiormente”. Em Terra firme, passado num seringal, embrutecidos pela solidão da floresta, os personagens são ainda mais extremados, do ponto de vista ético, e têm consciência disso. Uma personagem, o velho Creto, nos diz o seguinte:

 

Às vezes me inclino em acreditar no demônio só. Demônio deve de ter manhas sem conta. Deus, na briga que lá eles tiveram, perdeu a luz e deve de ter tido um fim, pois o bom não existe e quando se mostra é em manhazinha para engabelar gente mortal. (1982, p. 30-31) 

 

A ideia do bem não existe; só o mal subsiste no mundo. O que me remete àquela personagem de Dostoievski, autor muito querido para Antísthenes, que proclamou: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.[1] Para o velho Creto, Deus perdera a luz e perdera a luta do bem contra o mal. L. Ruas, meu professor de filosofia, poeta brilhante, no ensaio “O mundo ético-religioso de Terra firme”, faz uma análise irretocável da trajetória daquelas personagens, relacionando sua descrença no bem à ausência da cultura religiosa.

 

A vida na selva continua. O mundo continua e neste mundo e nesta selva continuam as duas sementes de Dico e de Argina, as duas sementes do Homem e da Mulher: Leocrísio e Jumas, o Bem e o Mal. Mas um Bem acovardado, fraco, incapaz de vencer, incapaz de lutar, incapaz de triunfar; e um Mal forte, vigoroso, triunfante, espalhando, por toda parte, o vento destruidor da dor, do ódio e da morte. (...) Um mundo sem Deus, sem Fé, sem Esperança, e sem Caridade. Uma selva embrutecida e embrutecedora, um mundo que é a própria Cidade do Demônio. (RUAS, p. 154) 

 

É uma tendência da literatura que se produz na região assumir posições antagônicas: ora o edenismo, que vislumbra no espaço amazônico o paraíso mítico-religioso, popularizado na Bíblia, e que muitas vezes pauta-se unicamente pelo exotismo; ora o infernismo, que, pelo contrário, revela o espaço opressor – impenetrável, cruel, arquetípico. Esta é a opção de Antísthenes Pinto: o desencanto para com o futuro daqueles que vegetam nos grotões amazônicos. Terra firme ganhou o Prêmio Governo do Estado do Amazonas, de romance, em 1968.

A solidão e os anjos, de 1976, trata de um tema inusitado: a perfuração de poços de petróleo na fictícia Nova Ofélia, pela não menos fictícia Petromar. O petróleo seria a redenção daquela gente, mas a miudeza dos acontecimentos, o dia a dia massacrante e a frustração pela busca que se revela infrutífera, vai, aos poucos, triturando o que havia de razão naqueles seres desesperançados. A gente estranha que introduz novos hábitos na cidade deixa para trás toda uma história de vida e vai aos poucos se metamorfoseando – e aos nativos – naqueles monstros morais a que já nos referimos. E mais uma vez, ao concluir a leitura de um romance de Antísthenes Pinto, ficamos com aquela sensação de culpa, aquela ideia de que é preciso não se entregar, é preciso reagir contra o monstro totalitário – aquele que nos quer, a todos, dizendo sempre sim! Há nos romances de Antísthenes, ao lado das cenas fortes de violência – violência física, violência moral – uma mensagem implícita, que rejeita qualquer maniqueísmo: o mal triunfará enquanto o bem for fraco. Aliás, sendo fraco, o bem é apenas parte do mal. A solidão e os anjos ganhou o Prêmio Prefeitura de Manaus de 1976, de melhor romance.

Várzea dos afogados, romance que chegou à terceira edição, fala do drama de uma família e sua trajetória das barrancas do Amazonas até a total decomposição na periferia de Manaus. Tanto do ponto de vista formal como de conteúdo, Várzea dos afogados é uma síntese das narrativas anteriores – onde o homem é sempre vencido pela natureza – inclusive a natureza urbana. Com Várzea dos afogados, Antísthenes dava por concluída, no plano da prosa de ficção, sua imersão no universo regional.

A novela seguinte, Os agachados, de 1985, traz uma ambientação psicológica bem diversa daquela a que nos acostumáramos nas narrativas anteriores: num clima de pesadelo, ele acompanha a trajetória de Rinaldo e a rotina dos botequins de Manaus e seus frequentadores. Novamente, Antísthenes sai do lugar-comum da narrativa realista-naturalista experimentando com a linguagem, ousando e mantendo-se antenado com o que se fazia (e se faz) de mais atual na literatura brasileira. Os agachados fora agraciado com o Prêmio Suframa de Literatura de 1984.

Por fim, temos a novela Porão das almas, publicada em 1992, sem dúvida, sua obra-prima narrativa. Um menino de 13 anos, Bores, habita o porão de uma velha casa, decadente em todos os aspectos, em uma bucólica Manaus, hoje apenas imaginada. O pequeno Bores, de saúde frágil, convive com os fantasmas que lhe frequentam o sórdido porão, mas também com os fantasmas de carne e osso que transitam à luz do dia pelos corredores sombrios do sobrado: as tias infelizes, o pai, uma ruína moral, a mãe anulada, o irmão suicida, e a louca Matilde, apaixonada por Bores. Explorando os limites do paradoxo, a tragédia que se abate sobre a família de Bores representa a sua redenção. Fazendo uso da técnica cinematográfica, a narrativa se estrutura em quadros que, quando não fechados, completam-se ou explicam-se logo adiante. A simplicidade da trama, aliada à mediocridade e ao ridículo que esmagam as personagens, lembra de imediato dois gigantes, quase sempre esquecidos: o brasileiro Dionélio Machado e o russo Anton Tchekhov. Mas são meros pontos de referência: Antísthenes Pinto basta-se em si mesmo.

A palavra-chave que sobressai nas narrativas analisadas é solidão. A solidão que embrutece até aos limites da loucura os personagens de Chavascal e Terra firme, isolados do mundo pela floresta inexpugnável e competindo ensandecidamente entre si – uma metáfora para a própria vida urbana que se desenha cotidianamente diante de nossos olhos. A solidão, já explícita desde o título, dos personagens de A solidão e os anjos, que se movimentam entre nada e coisa nenhuma, como diria Pessoa. A solidão do ribeirinho de Várzea dos afogados, que migra para a capital e aqui vê-se absurdamente sozinho – sem amparo nem mesmo da justiça, que deveria ser igual para todos. A solidão dos deserdados, da novela Os agachados, que vagueiam pelas noites de Manaus – e nada encontram além da própria sombra ou das sombras de seus fantasmas. A solidão do pequeno Bores, de O porão das almas, que, a despeito de viver num casarão cheio de gente, é um solitário que só se redime na tragédia que destrói sua família, e da qual ele é o único sobrevivente.

Há em Antísthenes Pinto, como observou o saudoso L. Ruas, a propósito de uma personagem de Terra firme, uma opção ética – e estética, eu acrescentaria – pelo mal, pois é mostrando o mal em toda a sua dimensão, sem subterfúgios, que nos incomodamos, que nos reconhecemos e fazemos nossa opção. Um trabalho de artesão, esse – compor ao longo de três romances e três novelas um entrançado de maldades e entregá-las ao julgamento de leitores que possam discernir, separar – pois é esse, essencialmente, o trabalho do crítico.  Georges Bataille, na série de ensaios que publicou sob o título A literatura e o mal, afirma que  

 

A literatura é comunicação. A comunicação impõe a lealdade: a moral rigorosa, neste aspecto, é dada a partir de cumplicidades no conhecimento do Mal, que estabelecem a comunicação intensa. A literatura não é inocente, e, culpada, ela enfim deveria se confessar como tal. (p. 10)

 

A literatura consciente e consequente, não alienada, tende a mostrar o mal de forma expressionista, desmedida, para assim denunciá-lo: a poesia de Baudelaire e Augusto dos Anjos; as narrativas de Kafka e Graciliano Ramos; o universo trágico de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos – são representantes dessa literatura que, centrada no mal, repercutem com o sentido inverso, porque ao leitor é dada a oportunidade da escolha. Antísthenes Pinto, deliberadamente, faz essa escolha: sem nenhum maniqueísmo, ele nos conduz ao supremo maniqueísmo, não nos deixando opção – sua “estética do mal” era um hino ao bem. Engraçado é que só agora percebi isso; quanta discussão teríamos tido, se eu tivesse percebido essa “estética do Mal” no seu tempo devido... Será que o bom Antísthenes concordaria com ela?

 

VII

Transitando das mais radicais experiências poéticas da segunda metade do século XX até a ficção de traço “regionalista”, Antísthenes Pinto deixou um rastro de luz a iluminar a literatura amazonense. Esse legado, coligido em 18 livros, ainda está por merecer a atenção de estudos mais profundos.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Básica

PINTO, Antísthenes. A solidão e os anjos. Manaus: Prefeitura Municipal, 1976.

______. Angústia numeral. Manaus: Prefeitura Municipal, 1976.

______. Chavascal. 2. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.

______. Curvas do tempo. Manaus: Edição do Autor, 1984.

______. Os agachados. 3. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1993.

______. Poesia reunida. Manaus: Edições Puxirum, 1987.

______. Porão das almas. 2. ed. Manaus: Valer, 1999.

______. Terra firme. 2. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.

______. Várzea dos afogados. Manaus: Edições Governo do Amazonas, 1981.

 

Geral

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução: Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2. ed. Tradução: Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov. Tradução: Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1995.

GINSBERG, Allen. Uivo. Tradução: Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1984.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Tradução: Pérola de Carvalho e Alice Kyoko. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

PIVA, Roberto. Antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 1985.

POUND. Ezra. ABC da literatura. 3. ed. Tradução: Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1977.

______. Poesia. Tradução: Augusto de Campos et al. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1983.

RUAS, L. O mundo ético-religioso de Terra Firme. In: PINTO, Antísthenes. Terra firme. 2. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.

TUFIC, Jorge (Org.). Pequena antologia Madrugada. Manaus: Edições Madrugada, Sergio Cardoso & Cia, 1958.

 



[1] Muito difundida, Dostoievski jamais escreveu essa frase. Trata-se, entretanto, da paráfrase de uma passagem de Os irmãos Karamazov (1995, p.160), sintetizada na fórmula que se tornou famosa.