Zemaria Pinto
VI
Adentremos agora no
território sombrio da prosa de ficção de Antísthenes Pinto. Guardem bem este
adjetivo: sombrio – ele qualifica com exatidão o mundo ficcional das novelas e
romances de Antísthenes. Não se trata de um juízo negativo de valor, mas de uma
metáfora – as sombras da prosa de ficção de Antísthenes vão se revelar, ao
final, as vésperas da luz.
Em 1965, com a publicação
de Chavascal, o autor envereda pela prosa de ficção. Chavascal
passa-se em um seringal, nas cercanias de Terra Clara. Não sei se devo falar em
realismo, em função das fortes tintas com que Antísthenes colore aquele painel.
Expressionismo, talvez, pois a
realidade é de tal forma realçada, quero dizer, exagerada, de forma
intencional, que pouco sobra de humanidade naqueles personagens: monstros
morais, deformados interiormente – novamente, Antísthenes, assim como na
poesia, não faz concessões. Chavascal é o tipo ideal daquilo a que os
críticos mais apressados costumam rotular de literatura regionalista. Mas o que
é mesmo literatura regionalista? Sempre me pareceu estranha essa denominação –
Alfredo Bosi, por exemplo, chama de regionalista tudo o que se opõe ao urbano:
do conjunto da obra de Guimarães Rosa a A
Madona de Cedro, do urbano Antônio Callado (BOSI, p. 426-428). A
brasilianista Luciana Stegagno Picchio, na sua História da Literatura
Brasileira, age da mesma forma (PICCHIO, p. 402-404). Mas, de modo geral,
regionalista é sinônimo de literatura fora do eixo daquilo que nós chamamos
mais atrás de “centros culturais mais avançados do país.” Diga-se que o termo
não está registrado nos dicionários especializados em literatura. Quanto aos
dicionários comuns, o Houaiss diz: “caráter do texto literário que se baseia em
costumes e tradições regionais, e que tem como uma de suas características o
uso de linguagens locais.” O Aurélio é mais conciso ainda: “caráter da
literatura que se baseia em costumes e tradições regionais.” Ou seja, não
fazendo distinção com o urbano, os dicionários comuns corroboram a ideia geral
– o que está fora do eixo é regionalista. Podemos mesmo dizer que existe um
forte preconceito, que nega aquele sábio conselho de Tolstói: “Escreve sobre
tua aldeia e estarás escrevendo sobre o mundo.” Uma novela de Tolstói, uma peça
de Tchekhov ou um romance de Dostoievski são universais, mesmo que se passem
numa minúscula aldeia perdida da Sibéria. Por que então um conto amazonense
será sempre regionalista?
Terra firme, publicado em 1970, é um romance de
linguagem peculiar: frases curtas, sempre buscando construir imagens na mente
do leitor, e personagens enfurecidos, assoberbados daquela ira inexplicável.
A poronga na testa, o saco de borracha nas costas, o terçado afiado na
mão. Madrugada parada. Lá um e outro esturro de onça. Chegou na primeira
seringueira com o coração em tempo de pular do peito. Em outras estradas o
corte tinha seguramente começado. Os dedos adormecidos em contato com as
tigelas no fundo do saco. Riscou a faca na casca da árvore e o leite desceu
cheiroso. Absorvia pensamentos infantis, mas tinha pressentimentos adultos,
ruins. Tirou a farinha do saco e comeu como se quisesse se empanzinar. Ouviu um
grito perto, respondeu. Não demorou chegar por trás dos arbustos o Marçal. Era
o seringueiro mais perto de sua estrada. Gosta dele, se bem não tivesse motivo
algum para gostar de alguém. (1982, p. 119)
Ainda há pouco, a
respeito dos personagens de Chavascal, falei em “monstros morais,
deformados interiormente”. Em Terra firme, passado num seringal,
embrutecidos pela solidão da floresta, os personagens são ainda mais extremados,
do ponto de vista ético, e têm consciência disso. Uma personagem, o velho Creto,
nos diz o seguinte:
Às vezes me inclino em acreditar no demônio só. Demônio deve de ter
manhas sem conta. Deus, na briga que lá eles tiveram, perdeu a luz e deve de
ter tido um fim, pois o bom não existe e quando se mostra é em manhazinha para
engabelar gente mortal. (1982, p. 30-31)
A ideia do bem não
existe; só o mal subsiste no mundo. O que me remete àquela personagem de
Dostoievski, autor muito querido para Antísthenes, que proclamou: “Se Deus não
existe, então tudo é permitido”.[1] Para
o velho Creto, Deus perdera a luz e perdera a luta do bem contra o mal. L.
Ruas, meu professor de filosofia, poeta brilhante, no ensaio “O mundo
ético-religioso de Terra firme”, faz uma análise irretocável da
trajetória daquelas personagens, relacionando sua descrença no bem à ausência
da cultura religiosa.
A vida na selva continua. O mundo continua e neste mundo e nesta selva
continuam as duas sementes de Dico e de Argina, as duas sementes do Homem e da
Mulher: Leocrísio e Jumas, o Bem e o Mal. Mas um Bem acovardado, fraco, incapaz
de vencer, incapaz de lutar, incapaz de triunfar; e um Mal forte, vigoroso,
triunfante, espalhando, por toda parte, o vento destruidor da dor, do ódio e da
morte. (...) Um mundo sem Deus, sem Fé, sem Esperança, e sem Caridade. Uma
selva embrutecida e embrutecedora, um mundo que é a própria Cidade do Demônio.
(RUAS, p. 154)
É uma tendência da
literatura que se produz na região assumir posições antagônicas: ora o
edenismo, que vislumbra no espaço amazônico o paraíso mítico-religioso,
popularizado na Bíblia, e que muitas vezes pauta-se unicamente pelo exotismo; ora
o infernismo, que, pelo contrário, revela o espaço opressor – impenetrável,
cruel, arquetípico. Esta é a opção de Antísthenes Pinto: o desencanto para com
o futuro daqueles que vegetam nos grotões amazônicos. Terra firme ganhou
o Prêmio Governo do Estado do Amazonas, de romance, em 1968.
A solidão e os anjos, de 1976, trata de um tema
inusitado: a perfuração de poços de petróleo na fictícia Nova Ofélia, pela não
menos fictícia Petromar. O petróleo seria a redenção daquela gente, mas a miudeza
dos acontecimentos, o dia a dia massacrante e a frustração pela busca que se
revela infrutífera, vai, aos poucos, triturando o que havia de razão naqueles
seres desesperançados. A gente estranha que introduz novos hábitos na cidade
deixa para trás toda uma história de vida e vai aos poucos se metamorfoseando –
e aos nativos – naqueles monstros morais a que já nos referimos. E mais uma
vez, ao concluir a leitura de um romance de Antísthenes Pinto, ficamos com aquela
sensação de culpa, aquela ideia de que é preciso não se entregar, é preciso
reagir contra o monstro totalitário – aquele que nos quer, a todos, dizendo
sempre sim! Há nos romances de Antísthenes, ao lado das cenas fortes de
violência – violência física, violência moral – uma mensagem implícita, que rejeita
qualquer maniqueísmo: o mal triunfará enquanto o bem for fraco. Aliás, sendo fraco,
o bem é apenas parte do mal. A solidão e os anjos ganhou o Prêmio
Prefeitura de Manaus de 1976, de melhor romance.
Várzea dos afogados, romance que chegou à terceira
edição, fala do drama de uma família e sua trajetória das barrancas do Amazonas
até a total decomposição na periferia de Manaus. Tanto do ponto de vista formal
como de conteúdo, Várzea dos afogados é uma síntese das narrativas
anteriores – onde o homem é sempre vencido pela natureza – inclusive a natureza
urbana. Com Várzea dos afogados, Antísthenes dava por concluída, no
plano da prosa de ficção, sua imersão no universo regional.
A novela seguinte, Os agachados,
de 1985, traz uma ambientação psicológica bem diversa daquela a que nos
acostumáramos nas narrativas anteriores: num clima de pesadelo, ele acompanha a
trajetória de Rinaldo e a rotina dos botequins de Manaus e seus frequentadores.
Novamente, Antísthenes sai do lugar-comum da narrativa realista-naturalista
experimentando com a linguagem, ousando e mantendo-se antenado com o que se fazia
(e se faz) de mais atual na literatura brasileira. Os agachados fora
agraciado com o Prêmio Suframa de Literatura de 1984.
Por fim, temos a novela Porão das almas, publicada em 1992, sem
dúvida, sua obra-prima narrativa. Um menino de 13 anos, Bores, habita o porão
de uma velha casa, decadente em todos os aspectos, em uma bucólica Manaus, hoje
apenas imaginada. O pequeno Bores, de saúde frágil, convive com os fantasmas
que lhe frequentam o sórdido porão, mas também com os fantasmas de carne e osso
que transitam à luz do dia pelos corredores sombrios do sobrado: as tias
infelizes, o pai, uma ruína moral, a mãe anulada, o irmão suicida, e a louca
Matilde, apaixonada por Bores. Explorando os limites do paradoxo, a tragédia
que se abate sobre a família de Bores representa a sua redenção. Fazendo uso da
técnica cinematográfica, a narrativa se estrutura em quadros que, quando não
fechados, completam-se ou explicam-se logo adiante. A simplicidade da trama,
aliada à mediocridade e ao ridículo que esmagam as personagens, lembra de
imediato dois gigantes, quase sempre esquecidos: o brasileiro Dionélio Machado
e o russo Anton Tchekhov. Mas são meros pontos de referência: Antísthenes Pinto
basta-se em si mesmo.
A palavra-chave que
sobressai nas narrativas analisadas é solidão.
A solidão que embrutece até aos limites da loucura os personagens de Chavascal
e Terra firme, isolados do mundo pela floresta inexpugnável e competindo
ensandecidamente entre si – uma metáfora para a própria vida urbana que se
desenha cotidianamente diante de nossos olhos. A solidão, já explícita desde o
título, dos personagens de A solidão e os anjos, que se movimentam entre
nada e coisa nenhuma, como diria Pessoa. A solidão do ribeirinho de Várzea
dos afogados, que migra para a capital e aqui vê-se absurdamente sozinho –
sem amparo nem mesmo da justiça, que deveria ser igual para todos. A solidão
dos deserdados, da novela Os agachados, que vagueiam pelas noites de
Manaus – e nada encontram além da própria sombra ou das sombras de seus
fantasmas. A solidão do pequeno Bores, de O porão das almas, que, a
despeito de viver num casarão cheio de gente, é um solitário que só se redime
na tragédia que destrói sua família, e da qual ele é o único sobrevivente.
Há em Antísthenes Pinto,
como observou o saudoso L. Ruas, a propósito de uma personagem de Terra firme,
uma opção ética – e estética, eu acrescentaria – pelo mal, pois é mostrando o mal
em toda a sua dimensão, sem subterfúgios, que nos incomodamos, que nos
reconhecemos e fazemos nossa opção. Um trabalho de artesão, esse – compor ao longo de três romances e três novelas um
entrançado de maldades e entregá-las ao julgamento de leitores que possam
discernir, separar – pois é esse, essencialmente, o trabalho do crítico. Georges Bataille, na série de ensaios que
publicou sob o título A literatura e o mal, afirma que
A literatura é comunicação. A comunicação impõe a lealdade: a
moral rigorosa, neste aspecto, é dada a partir de cumplicidades no conhecimento
do Mal, que estabelecem a comunicação intensa. A literatura não é inocente, e,
culpada, ela enfim deveria se confessar como tal. (p. 10)
A literatura consciente e
consequente, não alienada, tende a mostrar o mal de forma expressionista,
desmedida, para assim denunciá-lo: a poesia de Baudelaire e Augusto dos Anjos;
as narrativas de Kafka e Graciliano Ramos; o universo trágico de Nelson
Rodrigues e Plínio Marcos – são representantes dessa literatura que, centrada
no mal, repercutem com o sentido inverso, porque ao leitor é dada a
oportunidade da escolha. Antísthenes Pinto, deliberadamente, faz essa escolha:
sem nenhum maniqueísmo, ele nos conduz ao supremo maniqueísmo, não nos deixando
opção – sua “estética do mal” era um hino ao bem. Engraçado é que só agora percebi isso; quanta discussão
teríamos tido, se eu tivesse percebido essa “estética do Mal” no seu tempo
devido... Será que o bom Antísthenes concordaria com ela?
VII
Transitando das mais
radicais experiências poéticas da segunda metade do século XX até a ficção de
traço “regionalista”, Antísthenes Pinto deixou um rastro de luz a iluminar a
literatura amazonense. Esse legado, coligido em 18 livros, ainda está por
merecer a atenção de estudos mais profundos.
BIBLIOGRAFIA
Básica
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anjos. Manaus: Prefeitura Municipal, 1976.
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numeral. Manaus: Prefeitura
Municipal, 1976.
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Edição do Autor, 1984.
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Manaus: Casa Editora Madrugada, 1993.
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Edições Puxirum, 1987.
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Manaus: Valer, 1999.
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Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.
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Geral
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RUAS, L. O mundo ético-religioso de
Terra Firme. In: PINTO, Antísthenes. Terra
firme. 2. ed. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1982.
TUFIC, Jorge (Org.). Pequena antologia Madrugada. Manaus:
Edições Madrugada, Sergio Cardoso & Cia, 1958.
[1] Muito difundida, Dostoievski jamais escreveu essa frase. Trata-se, entretanto, da paráfrase de uma passagem de Os irmãos Karamazov (1995, p.160), sintetizada na fórmula que se tornou famosa.