Amigos do Fingidor

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Lira da Madrugada – Almir Diniz 5/15


Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Almir Diniz

Nome completo: Almir Diniz de Carvalho

Naturalidade: Cambixe, município de Careiro da Várzea – AM

Nascimento: 6 de novembro de 1929

Falecimento: 28 de maio de 2021

 

Obra poética:

·       Encontros com a natureza (1996)

·       Caminhos da alma (1996)

·       Corpo de mulher (1996)

·       Andanças poéticas (1997)

·       Os deuses (1998)

·       O elogio do caboclo (1998)

·       Floradas da alma (2000)

·       Plumas humanas (2000)

·       Algemas de ternura (2001)

·       Floradas do corpo (2001)

·       Corações em chamas (2002)

·       Magia e sedução (2010)

·       Melodia pagã (2011)

·       Minha roça de urtigas (2011)

·       Mulheres (2011)

·       Pétalas e penas (2012)

·       O jardim da minha mãe (2014)


TRISTEZA

 

 

Cavalgo, triste, meu corcel alado

pelas pistas sem fim do pensamento,

de rédea solta, solto meu lamento,

meu protesto, de lágrimas molhado.

 

Galopando sem rumo, e magoado,

carpindo no selim meu sofrimento,

chego a pensar que todo este tormento

é mero sonho, e sonho malfadado...

 

Mas, se passo trotando contra o vento

e ouço um tropel alegre pelo prado,

aperto o arreio... sei... eis-me acordado!

 

Ai, sim, sofro a dor que me vai dentro,

essa dor, que mais dói, sem ferimento,

que as feridas de todo meu passado!

 

É espantosa a concentração de títulos de Almir Diniz, no gênero poético: dezessete, em dezesseis anos. O autor nos explica que essa poesia veio sendo construída, lentamente, desde a juventude, na segunda metade dos anos 1940, até os dias de hoje. É uma poesia em que à simplicidade se alia uma grande precisão técnica, calcada na reflexão sobre o homem amazônico e a exuberante natureza que o cerca, externando o sentimento que lhe vai n’alma, porque “ninguém doma um coração de poeta”, como cantou o grande Augusto, dos anjos e dos demônios.   

A rigor, mesmo pertencendo, do ponto de vista cronológico, à geração Madrugada, Almir Diniz não militou no Clube. E seus livros começaram a vir à luz quando o Clube já não mais existia. Antes disso, apenas publicações esparsas, em jornais e revistas. Mas isso são detalhes que não o excluem de uma apreciação rigorosa da poesia da época.

O poema “Tristeza”, do livro Caminhos da alma, representa uma síntese da poesia de Almir Diniz: entre o telúrico e o urbano, o lúdico e o sentimental, o poeta constrói, sem invencionices, uma poesia que a um só tempo comunica e comove – no sentido mais primitivo desta palavra: promover deslocamento, agitar com força. A poesia de Almir Diniz nos coloca no centro da vida cabocla – seja do caboclo lavrador, campônio e campeiro, seja do caboclo intelectual, afeito às lides da política, do direito e do jornalismo. Almir Diniz, advogado, ex-prefeito, jornalista premiado, fazendeiro – de plantar e de criar –, traz na pele acobreada as marcas dessa vivência múltipla.

No poema em tela, o corcel alado que o eu lírico cavalga é uma metáfora para um permanente estado de poesia. O eu lírico está possuído pela poesia. Mas, ao contrário do uso que se faz nas religiões afro-brasileiras, onde o cavalo é a pessoa que recebe o espírito, Almir Diniz coloca o poeta a cavalgar o cavalo-poesia, “pelas pistas sem fim do pensamento”, abrindo todas as possibilidades para esse encontro com o cavaleiro-poeta.

A “rédea solta” em plena cavalgada, uma situação de risco, é uma metáfora para o estado de desespero em que o eu lírico de encontra, pontuado pelos substantivos que se lhe seguem – lamento, protesto, lágrimas –, de alguma forma relacionados com a decisão intempestiva de manter a rédea solta, com todos os riscos advindos dessa decisão. Basta-nos esta primeira quadra, para ilustrar o que dissemos da composição como síntese: a metáfora do corcel a cavalgar é telúrica; se o corcel é alado, acrescentamos o elemento lúdico; pistas, substituindo estradas ou mesmo caminhos, ambas de caráter rural, é o elemento urbano que se acrescenta ao poema; por fim, o toque sentimental é dado pela expressão física daquele momento – o lamento-protesto “de lágrimas molhado”. 

Na segunda estrofe, a confusão mental do eu lírico, em função do desespero em que se encontra – “galopando sem rumo” –, o faz pensar que ele vive um pesadelo, um “sonho malfadado”. No terceto que se segue, o eu lírico esclarece a si mesmo – e ao leitor – que seu estado é de plena vigília, contrapondo as imagens de si mesmo “trotando contra o vento” com o sentido atento para um “tropel alegre pelo prado”. Essa superposição do lúdico com o real, do metafórico com o banal cotidiano garante o tensionamento da nota poética: se não houvesse o lúdico, o metafórico, estaríamos diante de um texto prosaico. Não é o caso, absolutamente.

A última estrofe coloca o eu lírico de volta à realidade da qual ele escapara pelas artes da poesia: não mais corcel alado, não mais rédeas soltas, não mais galope sem rumo. Apenas a consciência da dor que dói “sem ferimento”. Essa dor presente que sentimos todos, sempre que pensamos sobre o nosso estar-no-mundo. Como refletiu com sublimidade o filósofo Schopenhauer,

Reproduzem-se na poesia lírica do genuíno poeta o íntimo da humanidade inteira e tudo o que milhões de homens passados, presentes e futuros sentiram e sentirão nas mesmas situações, visto que retornam continuamente, e ali encontram a sua expressão apropriada. [...] O poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e pratica.[1]  

 

Esta é apenas uma amostra colhida no universo da poesia de Almir Diniz. Poesia cheia de verdade, mas também vibrante na sua tensão lúdica, pois é disso que se faz o poema – da vida reinventada, amalgamada nos quatro elementos: o fogo fundindo a mistura de barro e de água, resultados do sopro do vento.

Tristeza (Mauri Mrq e Almir Diniz).


[1] SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. 1.º tomo. Tradução: Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 328-329.