Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Anísio
Mello
Nome completo: Anísio Thaumaturgo Soriano de Mello
Naturalidade: Itacoatiara – AM
Nascimento: 21 de junho de 1927
Falecimento: 11 de abril de 2010
Obra poética:
· Lira Nascente
(1950)
· Minhas vitórias-régias (1952)
· Remanso (1958)
· Estrelas do meu caminho (1962)
· Festa geral (1977)
· Vibrações (1981)
· Sexagesima stella (1992)
· Kaleidoskópio (2002)
· Convite à poesia (2011 – póstumo)
· Estrela viva (2019 – póstumo)
KALEIDOSCÓPIO
Anísio Mello (1927-2010)
Juntando palavras
neste meu Kaleidoscópio
abri novo mundo.
Sílabas de ouro
eu conto cinco/sete/cinco
e lembro o Japão.
Bandeira no céu
verde, amarelo, azul, branco
meu amor antigo.
Olhar da menina
escreve meu “doce nome”
nos seus pensamentos.
Balé de felino
entre as flores do verde:
traição à vista.
Foi buscar o sol
e com suas asas de cera
o sonho acabou.
No vaso quebrado
os retalhos de uma vida:
lembranças da China.
Num dia quentíssimo
com um balde d’água na mão
apaguei o sol.
Caindo do céu
como se fosse cristal
molha o chão: a chuva
Olho o céu escuro
uma estrela abandonada
faz o meu luar.
Relógio-de-sol
com medo da tempestade
atrasou o dia.
Me falas de amor.
No coração dos teus lábios
a pura verdade.
Brotando do asfalto
o trilho do bonde é visto:
praça da Saudade.
Saudade e lembrança
duas emoções que se unem
na velha cidade.
O silêncio disse
na sua profunda verdade
o início de tudo.
Na estrada da vida
“o poeta é um fingidor”
que ama tudo e a flor.
Madeira no campo.
Polpa, papel e palavra:
o livro está pronto.
Antes de comentar os 17 poemas de Anísio Mello que
fazem parte desta antologia, dediquemos alguns parágrafos a essa forma poética
ainda tão envolta em incompreensões, o haicai.
A forma fixa, na poesia moderna, caracteriza-se
principalmente pelo conteúdo: a ode, pela exaltação; a elegia, pela tristeza; a
balada, pela narrativa de um acontecimento. O soneto é uma exceção:
identifica-se unicamente pelos 14 versos que o compõem. Do ponto de vista
formal, o haicai é composto de três versos, no esquema 5-7-5 sílabas poéticas.
Mas, diferentemente do soneto, não basta esse rigor formal para caracterizar o
haicai; aliás, modernamente, a métrica já nem é fundamental, contando-se as
sílabas dos três versos por aproximação, de
Mas ainda não é tudo. Surgido no Japão, no século 16,
o haicai não admite sentimentalismo: é preciso manter o distanciamento entre o
observador (o poeta) e o objeto observado. Sobretudo, o haicai não prescinde de
uma boa dose de humor – não o humor cômico, zombeteiro, mas a graça, a presença
de espírito. Um ponto a observar, ainda que não declarado em nenhum manual, é a
relação com o zen-budismo, que está nas raízes do haicai: tudo no mundo é
transitório, impermanente, efêmero. Por outro lado, o zen-budista não se vê
como um ser isolado, mas como parte indissociável de um todo. Destes dois
conceitos zen – transitoriedade e anulação do eu – extraímos uma verdadeira
teoria do haicai:
1. O “eu” característico da lírica convencional, que
aprisiona a poesia em um eixo meramente confessional, anula-se por completo no
haicai: não ao sentimentalismo; à reflexão; às figuras intelectuais de
linguagem (metáforas, símiles, metonímias); não à antropomorfização (no haicai,
gente é gente, bicho é bicho, coisa é coisa); não a exercícios de linguagem
(rimas, aliterações, assonâncias). Em três palavras: linguagem descarnada, enxuta,
objetiva.
2. Eliminado o “eu”, a alma do haicai transfere-se para
a transitoriedade, caracterizada na observação da natureza e seu ciclo
essencial: nascimento, vida, morte. Daí a relação do haicai com as estações do
ano – primavera, verão, outono, inverno. Nada mais cíclico.
3. Um terceiro ponto pode ser observado se juntarmos o
“eu” – não de todo eliminado, mas com o devido distanciamento – registrando
sensações transitórias: visuais, auditivas, gustativas, olfativas, táteis.
Anísio Mello é artista de muitos instrumentos.
Pintor, escultor, músico, compositor, o escritor destaca-se em diversas
frentes: ensaio, ficção, poesia e até um precioso Vocabulário etimológico tupi do folclore amazônico. Sua poesia
caracteriza-se pelo lirismo, tendo se afirmado, no âmbito do Clube da
Madrugada, como um poeta sem pretensões a revoluções de nenhuma espécie, mas
com um conjunto de obra significativo, incluindo Kaleidoscópio, reunião de 126 haicais, onde o autor, longe de
preocupar-se com a teoria, destila todo o seu talento em composições precisas,
na forma e no conteúdo.
Vamos numerar, mentalmente, os dezessete poemas,
obedecendo à ordem de impressão, sem perder de vista o que dissemos acima,
quanto à objetividade da linguagem no haicai. Isto é, os poemas devem explicar-se
por si mesmos.
Os poemas 1 e 2, você já percebeu, são uma
referência ao próprio conjunto – sua forma esquemática de 5-7-5 sílabas
poéticas e sua origem.
O poema 3 é uma alusão à bandeira brasileira.
No poema de número 4, assim como no 12 e no 16, o lírico
Anísio Mello se impõe ao haicaísta, mas sem nublar o dom da observação ao ver,
no 12, o coração que toma forma nos lábios da amada.
O poema 5 é de refinada realização: a cena do “balé
de felino” é apenas sugerida, cabendo ao leitor montá-la, mentalmente.
O poema 6 remonta ao “sonho de Ícaro”, que tentou
voar até o sol com asas de cera, mas estas se derreteram no caminho. “O sonho
acabou” é uma citação literal do beatle
John Lennon: “the dream is over”, referindo-se ao sonho da geração que fizera
as revoltas do “maio de
O poema 7 é outro achado: um vaso chinês quebrado
traz lembranças que vêm como “retalhos de uma vida”.
No poema 8, o humor sutil: o balde d’água que apaga
não o sol, mas o calor que abrasa o dia.
O poema 9 brinca com a forma da chuva, que cai como
cristal, mas, em vez de quebrar, molha o chão.
No décimo poema, a sensação causada pela estrela
solitária é tão forte que o poeta a compara ao luar.
O relógio de sol aludido no poema 11 é um artefato
antigo, que, sem a presença do sol, para de funcionar.
Os poemas 13 e 14 complementam-se na visão do trilho
que brota do asfalto na praça chamada Saudade, trazendo a lembrança de uma
cidade e de um tempo distantes.
O poema de número 15 contraria uma regra básica: o
haicai não deve ser reflexivo. Trata-se de uma composição não apenas
“filosófica”, mas também “poética”. Ocorre que o haicai é a expressão do
instante, da sensação que o haicaísta percebe em um momento único. Nesse
sentido, podemos entender melhor o texto: o cerne de tudo é o silêncio
“daquele” momento. O problema reside na palavra “verdade”, que é um conceito
visível apenas para quem a está expressando, isto é, ao poeta. O silêncio,
neste caso, pode significar o fim ou o início de algo. E o haicai não pode
deixar esse tipo de dúvida. Entretanto, temos aqui, um belo exemplar de poesia,
escrito na forma de haicai, mas que não se completa como tal: é um terceto.
O último poema dá-nos a
oportunidade de incluir mais um elemento na nossa teoria do haicai, relembrando
o que escreveu a respeito o mexicano Octavio Paz, quando disse que o haicai se
divide em duas partes: uma, que reflete a condição geral, temporal e/ou espacial
do poema, contendo em si a ideia de repetição cotidiana e, por isso, de
eternidade; outra, refletindo o instante, o efêmero a experiência incomparável.
Uma parte descritiva; outra, inesperada, relampejante, única. Vejamos:
1. Madeira no campo. / Polpa, papel e palavra. Esta primeira parte reúne as
informações essenciais para se chegar ao elemento-surpresa. E aqui temos a sequência
espaço-tempo completa: a madeira do campo, transformada em polpa, faz-se em
papel; alia-se a este as palavras.
2. O livro está pronto. Este é o relâmpago, o elemento inesperado, completando a sequência.
O haicai é uma arte
difícil dentro da sua simplicidade. Talvez por isso as crianças têm enorme
facilidade para apreender o que os haicaístas chamam de “espírito do haicai”: uma
poesia antiliterária, surpreendente como um artefato capaz de fazer brotar a
beleza a partir da banal realidade cotidiana.