Amigos do Fingidor

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Lira da Madrugada – Anísio Mello 3/15


Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Anísio Mello

Nome completo: Anísio Thaumaturgo Soriano de Mello

Naturalidade: Itacoatiara – AM

Nascimento: 21 de junho de 1927

Falecimento: 11 de abril de 2010

 

Obra poética:

·       Lira Nascente (1950)

·       Minhas vitórias-régias (1952)

·       Remanso (1958)

·       Estrelas do meu caminho (1962)

·       Festa geral (1977)

·       Vibrações (1981)

·       Sexagesima stella (1992)

·       Kaleidoskópio (2002)

·       Convite à poesia (2011 – póstumo)

·       Estrela viva (2019 – póstumo)


KALEIDOSCÓPIO

Anísio Mello (1927-2010)

 

Juntando palavras

neste meu Kaleidoscópio

abri novo mundo.

 

Sílabas de ouro

eu conto cinco/sete/cinco

e lembro o Japão.

 

Bandeira no céu

verde, amarelo, azul, branco

meu amor antigo.

 

Olhar da menina

escreve meu “doce nome”

nos seus pensamentos.

 

Balé de felino

entre as flores do verde:

traição à vista.

 

Foi buscar o sol

e com suas asas de cera

o sonho acabou.

 

No vaso quebrado

os retalhos de uma vida:

lembranças da China.

 

Num dia quentíssimo

com um balde d’água na mão

apaguei o sol.

 

Caindo do céu

como se fosse cristal

molha o chão: a chuva

 

Olho o céu escuro

uma estrela abandonada

faz o meu luar.

 

Relógio-de-sol

com medo da tempestade

atrasou o dia.

 

Me falas de amor.

No coração dos teus lábios

a pura verdade.

 

Brotando do asfalto

o trilho do bonde é visto:

praça da Saudade.

 

Saudade e lembrança

duas emoções que se unem

na velha cidade.

 

O silêncio disse

na sua profunda verdade

o início de tudo.

 

Na estrada da vida

“o poeta é um fingidor”

que ama tudo e a flor.

 

Madeira no campo.

Polpa, papel e palavra:

o livro está pronto.

 


Antes de comentar os 17 poemas de Anísio Mello que fazem parte desta antologia, dediquemos alguns parágrafos a essa forma poética ainda tão envolta em incompreensões, o haicai.

A forma fixa, na poesia moderna, caracteriza-se principalmente pelo conteúdo: a ode, pela exaltação; a elegia, pela tristeza; a balada, pela narrativa de um acontecimento. O soneto é uma exceção: identifica-se unicamente pelos 14 versos que o compõem. Do ponto de vista formal, o haicai é composto de três versos, no esquema 5-7-5 sílabas poéticas. Mas, diferentemente do soneto, não basta esse rigor formal para caracterizar o haicai; aliás, modernamente, a métrica já nem é fundamental, contando-se as sílabas dos três versos por aproximação, de 14 a 20 sílabas, por aí. O que caracteriza mesmo o haicai é o seu conteúdo: a observação da natureza, ou melhor, do meio ambiente – rural, urbano, doméstico. Nada mais contemporâneo.

Mas ainda não é tudo. Surgido no Japão, no século 16, o haicai não admite sentimentalismo: é preciso manter o distanciamento entre o observador (o poeta) e o objeto observado. Sobretudo, o haicai não prescinde de uma boa dose de humor – não o humor cômico, zombeteiro, mas a graça, a presença de espírito. Um ponto a observar, ainda que não declarado em nenhum manual, é a relação com o zen-budismo, que está nas raízes do haicai: tudo no mundo é transitório, impermanente, efêmero. Por outro lado, o zen-budista não se vê como um ser isolado, mas como parte indissociável de um todo. Destes dois conceitos zen – transitoriedade e anulação do eu – extraímos uma verdadeira teoria do haicai:

1.  O “eu” característico da lírica convencional, que aprisiona a poesia em um eixo meramente confessional, anula-se por completo no haicai: não ao sentimentalismo; à reflexão; às figuras intelectuais de linguagem (metáforas, símiles, metonímias); não à antropomorfização (no haicai, gente é gente, bicho é bicho, coisa é coisa); não a exercícios de linguagem (rimas, aliterações, assonâncias). Em três palavras: linguagem descarnada, enxuta, objetiva.

2.  Eliminado o “eu”, a alma do haicai transfere-se para a transitoriedade, caracterizada na observação da natureza e seu ciclo essencial: nascimento, vida, morte. Daí a relação do haicai com as estações do ano – primavera, verão, outono, inverno. Nada mais cíclico.

3.  Um terceiro ponto pode ser observado se juntarmos o “eu” – não de todo eliminado, mas com o devido distanciamento – registrando sensações transitórias: visuais, auditivas, gustativas, olfativas, táteis.

Anísio Mello é artista de muitos instrumentos. Pintor, escultor, músico, compositor, o escritor destaca-se em diversas frentes: ensaio, ficção, poesia e até um precioso Vocabulário etimológico tupi do folclore amazônico. Sua poesia caracteriza-se pelo lirismo, tendo se afirmado, no âmbito do Clube da Madrugada, como um poeta sem pretensões a revoluções de nenhuma espécie, mas com um conjunto de obra significativo, incluindo Kaleidoscópio, reunião de 126 haicais, onde o autor, longe de preocupar-se com a teoria, destila todo o seu talento em composições precisas, na forma e no conteúdo.

Vamos numerar, mentalmente, os dezessete poemas, obedecendo à ordem de impressão, sem perder de vista o que dissemos acima, quanto à objetividade da linguagem no haicai. Isto é, os poemas devem explicar-se por si mesmos.

Os poemas 1 e 2, você já percebeu, são uma referência ao próprio conjunto – sua forma esquemática de 5-7-5 sílabas poéticas e sua origem.

O poema 3 é uma alusão à bandeira brasileira.

No poema de número 4, assim como no 12 e no 16, o lírico Anísio Mello se impõe ao haicaísta, mas sem nublar o dom da observação ao ver, no 12, o coração que toma forma nos lábios da amada.

O poema 5 é de refinada realização: a cena do “balé de felino” é apenas sugerida, cabendo ao leitor montá-la, mentalmente.

O poema 6 remonta ao “sonho de Ícaro”, que tentou voar até o sol com asas de cera, mas estas se derreteram no caminho. “O sonho acabou” é uma citação literal do beatle John Lennon: “the dream is over”, referindo-se ao sonho da geração que fizera as revoltas do “maio de 68”.

O poema 7 é outro achado: um vaso chinês quebrado traz lembranças que vêm como “retalhos de uma vida”.

No poema 8, o humor sutil: o balde d’água que apaga não o sol, mas o calor que abrasa o dia.

O poema 9 brinca com a forma da chuva, que cai como cristal, mas, em vez de quebrar, molha o chão.

No décimo poema, a sensação causada pela estrela solitária é tão forte que o poeta a compara ao luar.

O relógio de sol aludido no poema 11 é um artefato antigo, que, sem a presença do sol, para de funcionar.

Os poemas 13 e 14 complementam-se na visão do trilho que brota do asfalto na praça chamada Saudade, trazendo a lembrança de uma cidade e de um tempo distantes.

O poema de número 15 contraria uma regra básica: o haicai não deve ser reflexivo. Trata-se de uma composição não apenas “filosófica”, mas também “poética”. Ocorre que o haicai é a expressão do instante, da sensação que o haicaísta percebe em um momento único. Nesse sentido, podemos entender melhor o texto: o cerne de tudo é o silêncio “daquele” momento. O problema reside na palavra “verdade”, que é um conceito visível apenas para quem a está expressando, isto é, ao poeta. O silêncio, neste caso, pode significar o fim ou o início de algo. E o haicai não pode deixar esse tipo de dúvida. Entretanto, temos aqui, um belo exemplar de poesia, escrito na forma de haicai, mas que não se completa como tal: é um terceto.

O último poema dá-nos a oportunidade de incluir mais um elemento na nossa teoria do haicai, relembrando o que escreveu a respeito o mexicano Octavio Paz, quando disse que o haicai se divide em duas partes: uma, que reflete a condição geral, temporal e/ou espacial do poema, contendo em si a ideia de repetição cotidiana e, por isso, de eternidade; outra, refletindo o instante, o efêmero a experiência incomparável. Uma parte descritiva; outra, inesperada, relampejante, única. Vejamos:

1.  Madeira no campo. / Polpa, papel e palavra. Esta primeira parte reúne as informações essenciais para se chegar ao elemento-surpresa. E aqui temos a sequência espaço-tempo completa: a madeira do campo, transformada em polpa, faz-se em papel; alia-se a este as palavras.

2.  O livro está pronto. Este é o relâmpago, o elemento inesperado, completando a sequência.

O haicai é uma arte difícil dentro da sua simplicidade. Talvez por isso as crianças têm enorme facilidade para apreender o que os haicaístas chamam de “espírito do haicai”: uma poesia antiliterária, surpreendente como um artefato capaz de fazer brotar a beleza a partir da banal realidade cotidiana.


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