Todas as aves brancas construíram
ninhos no meu coração
e seus cânticos são de uma tristeza
inenarrável.
Vou absorvendo o orvalho noturno
com a mesmaquietude da árvore
curvada no barranco.
Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar
do rio comumente tranquilo.
A outra metade de mim vive no espelho
que deforma a minha paz. Tantas ruas
cruzam-se em meus pés, tumultuosas,
salpicadas de pranto
e seios de todas as cores e vícios e
viços.
As auroras e os crepúsculos das
cidades,
o ar plúmbeo, cinzento das cidades
arrancaram todo o humor que eu tinha
pelos homens.
(No entanto
o sangue corre nas minhasveiasfrias).
Ah se a memória se limitasse ao
presente,
todavia, o passado me inunda a alma
e cicatrizes das mais torpes
se espalham nos meus ossos, nos meus
nervos,
na minha sombra espectral, estática
sombra roxa.
Meu maior alimento é o silêncio
e o deslizar
do rio, comumente tranquilo.
A poesia
de Antísthenes Pinto é a quemelhor
reflete o desejo de mudança dos poetas
ligados à primeirageração
do Clube da Madrugada.
Do surrealismo ao concretismo,
Antísthenes ousou semprebuscar
o novo numa formanova. Poeta, romancista e contista,
além de exercitar
a crônicajornalística
e a críticaliterária,
Antísthenes morou durantemuitotempo no Rio de Janeiro, onde publicou regularmente
no lendárioSuplementoLiterário
do Jornal do Brasil, dirigido por Mário Faustino, onde
se veiculava o que se fazia de maisatual na literaturabrasileira,
entre os anos
50 e 60 do séculopassado.
Suapoesia
– austera, áspera,
semconcessões
ao agradável – é herdeira
de uma tradiçãorecente,
quecomeçacom a modernidade: Whitman, Maiakovski,
Fernando Pessoa, Mário de Andrade. Antísthenes Pinto, no Rio de Janeiroouem Manaus, ecoa os seuscontemporâneos Roberto Piva e Allen
Ginsberg.
O poema
“Noturno” pertence
ao seuprimeirolivro, Sombra e asfalto,
de 1957. Aos 28 anos, Antísthenes dá umpasso à frenteemrelação aos poetas
do Clube da Madrugada,
que estavam muito
ligados à chamadaGeração
de 45, e produz uma poesialivre de quaisquer amarrasformais, repleta
de signosque
se entrecruzam num movimentoassimétrico e incessante,
desconcertando o leitor. Essa característica é uma constante
na poesia de Antísthenes, tantoemrelação aos poemasdescarnados de Ossuárioquanto
ao deliranteAngústia numeral e mesmo ao seucanto do cisneCurvas do tempo.
Comecemos pelotítulo, “Noturno”,
tãosimples
e tão impregnado de significados,
quevãodesde a liturgiamedieval, onde
se cantam os salmos, até as diversas variantes
de composições musicais, afluentes do pensamento
romântico. Estas, por contiguidade,
influenciam a literatura, sendo comum
nominar-se “noturno” a poemaslíricos
impregnados de melancolia. Observe logo na primeiraestrofe, como
a justificar o título,
as referências à noite
(“luarazul”), à música e à tristeza (“e seuscânticossão de uma tristezainenarrável”). Combinando essa estrofecom a segunda,
vamos observar o quadro
descrito: a vozemissora
do poema, o eulírico, descreve-se estáticosob o “luarazul”, “absorvendo o orvalhonoturno”, “com
a mesmaquietude
da árvore curvada no barranco”.
No segundoverso,
a palavraavepoderialevar
a várias interpretações, mas “aves
brancas” é uma referênciadireta às aves
noturnas, ditas de “mauagouro”,
que se estabelecem emdefinitivo no coração
do poeta – poisninhossãometáforas de refúgio
e também de fortaleza
–, comseuscânticos “de uma tristezainenarrável”. Nãoresta ao poetasenão alimentar-se do silêncio e do “deslizar do rio, comumente tranquilo” – isto
é, da maisabsolutasolidão.
Mas o poeta é
umser
dividido: ao se olhar no espelho,
aquela paznoturna
e bucólica se confunde com a azáfamaurbana das ruas
“salpicadas de pranto”. O tumultointerior
se completacom
a metonímia dos seios/mulheres, “de todas as cores
e vícios e viços”,
de todas as raças, costumes
e idades. Essa insatisfaçãocom as cidades
as faz cinzentas e desoladas, não
importa a hora, corrompendo a alegria do poeta, que, no entanto,
sabe-se parte da massahumana. Somente
na quintaestrofenos é fornecida a chave
do poema: é o passadoqueestorva
o poeta, com
as “cicatrizestorpes”
que se espalham pelosseus “ossos
e nervos” – seuâmago, suaalma –, contaminando atésua “sombraespectral” de mortoemvida.
Paraenfatizar, então, a condição
descrita no início, de solidãosemlimites,
ele conclui repetindo que se alimentaapenas do silêncio
e do deslizar do rio.
Esseeulírico é umeremita, umser recolhido emsimesmo,
que, a despeito
do lugar físico-geográfico onde se encontra,
está longe de tudo
e de todos: no alvoroço
da cidadeou
na placidez do campoele estará sempresozinho. Entretanto,
suaslembranças
estão vivas, e isso
o machuca ao ponto de querernegarsuaessênciahumana.
Comoúltimorecursoparaexpiarsuasculpas
resta-lhe a solidão e maisnada.
Poesia de cunhoexistencialista, inquisidora das angústias e perplexidades humanas, supérflua na aparência,
na medidaemque é voltada para
a interioridade do poeta, na verdade,
é uma poesiaque
reflete as dores do mundo,
oumelhor,
a dor de todomundo. Daí a sua
complexidade. É o tipo de poesiamaisfácil de ser encontrado, resultante de qualquerbanal dor de cotovelo. Difícil é encontrá-lo comarte. Difícil
é convencer ao leitor
de que aquela dor,
mesmonão
sendo a sua, poderiasersua.
Lendo o poema de Antísthenes Pinto, mesmoquemnão esteja
naquele estado de espírito,
reconhecerá a poesiaque se projeta
a partir das palavras:
o homem exilado de simesmo, tomado pelaangústia de, a despeito
da condiçãohumana,
preferir a solidão dos ermos, onde
acalentará os ninhos das avesque
habitam seucoraçãodormente.