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sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Lira da Madrugada – Antísthenes Pinto 6/15

 Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Antísthenes Pinto

Nome completo: Antísthenes de Oliveira Pinto

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 28 de novembro de 1929

Falecimento: 3 de dezembro de 2000

 

Obra poética:

·       Sombra e asfalto (1957)

·       Ossuário (1963)

·       Angústia numeral (1976)

·       A rebelião dos bichos (1977)

·       Curvas do tempo (1984)

·       Poesia reunida (1987)


NOTURNO

                               

um luar azul percorrendo o meu corpo.

Todas as aves brancas construíram ninhos no meu coração

e seus cânticos são de uma tristeza inenarrável.

 

Vou absorvendo o orvalho noturno

com a mesma quietude da árvore curvada no barranco.

Meu maior alimento é o silêncio

e o deslizar do rio comumente tranquilo.

 

A outra metade de mim vive no espelho

que deforma a minha paz. Tantas ruas

cruzam-se em meus pés, tumultuosas, salpicadas de pranto

e seios de todas as cores e vícios e viços.

 

As auroras e os crepúsculos das cidades,

o ar plúmbeo, cinzento das cidades

arrancaram todo o humor que eu tinha pelos homens.

(No entanto o sangue corre nas minhas veias frias).

 

Ah se a memória se limitasse ao presente,

todavia, o passado me inunda a alma

e cicatrizes das mais torpes

se espalham nos meus ossos, nos meus nervos,

na minha sombra espectral, estática sombra roxa.

 

Meu maior alimento é o silêncio

e o deslizar do rio, comumente tranquilo. 


A poesia de Antísthenes Pinto é a que melhor reflete o desejo de mudança dos poetas ligados à primeira geração do Clube da Madrugada. Do surrealismo ao concretismo, Antísthenes ousou sempre buscar o novo numa forma nova. Poeta, romancista e contista, além de exercitar a crônica jornalística e a crítica literária, Antísthenes morou durante muito tempo no Rio de Janeiro, onde publicou regularmente no lendário Suplemento Literário do Jornal do Brasil, dirigido por Mário Faustino, onde se veiculava o que se fazia de mais atual na literatura brasileira, entre os anos 50 e 60 do século passado. Sua poesiaaustera, áspera, sem concessões ao agradável – é herdeira de uma tradição recente, que começa com a modernidade: Whitman, Maiakovski, Fernando Pessoa, Mário de Andrade. Antísthenes Pinto, no Rio de Janeiro ou em Manaus, ecoa os seus contemporâneos Roberto Piva e Allen Ginsberg.

O poemaNoturnopertence ao seu primeiro livro, Sombra e asfalto, de 1957. Aos 28 anos, Antísthenes dá um passo à frente em relação aos poetas do Clube da Madrugada, que estavam muito ligados à chamada Geração de 45, e produz uma poesia livre de quaisquer amarras formais, repleta de signos que se entrecruzam num movimento assimétrico e incessante, desconcertando o leitor. Essa característica é uma constante na poesia de Antísthenes, tanto em relação aos poemas descarnados de Ossuário quanto ao delirante Angústia numeral e mesmo ao seu canto do cisne Curvas do tempo.

Comecemos pelo título, “Noturno”, tão simples e tão impregnado de significados, que vão desde a liturgia medieval, onde se cantam os salmos, até as diversas variantes de composições musicais, afluentes do pensamento romântico. Estas, por contiguidade, influenciam a literatura, sendo comum nominar-se “noturno” a poemas líricos impregnados de melancolia. Observe logo na primeira estrofe, como a justificar o título, as referências à noite (“luar azul”), à música e à tristeza (“e seus cânticos são de uma tristeza inenarrável”). Combinando essa estrofe com a segunda, vamos observar o quadro descrito: a voz emissora do poema, o eu lírico, descreve-se estático sob o “luar azul”, “absorvendo o orvalho noturno”, “com a mesma quietude da árvore curvada no barranco”. No segundo verso, a palavra ave poderia levar a várias interpretações, masaves brancas” é uma referência direta às aves noturnas, ditas de “mau agouro”, que se estabelecem em definitivo no coração do poetapois ninhos são metáforas de refúgio e também de fortaleza –, com seus cânticos “de uma tristeza inenarrável”. Não resta ao poeta senão alimentar-se do silêncio e do “deslizar do rio, comumente tranquilo” – isto é, da mais absoluta solidão.

Mas o poeta é um ser dividido: ao se olhar no espelho, aquela paz noturna e bucólica se confunde com a azáfama urbana das ruas “salpicadas de pranto”. O tumulto interior se completa com a metonímia dos seios/mulheres, “de todas as cores e vícios e viços”, de todas as raças, costumes e idades. Essa insatisfação com as cidades as faz cinzentas e desoladas, não importa a hora, corrompendo a alegria do poeta, que, no entanto, sabe-se parte da massa humana. Somente na quinta estrofe nos é fornecida a chave do poema: é o passado que estorva o poeta, com as “cicatrizes torpesque se espalham pelos seusossos e nervos” – seu âmago, sua alma –, contaminando até suasombra espectral” de morto em vida. Para enfatizar, então, a condição descrita no início, de solidão sem limites, ele conclui repetindo que se alimenta apenas do silêncio e do deslizar do rio.

Esse eu lírico é um eremita, um ser recolhido em si mesmo, que, a despeito do lugar físico-geográfico onde se encontra, está longe de tudo e de todos: no alvoroço da cidade ou na placidez do campo ele estará sempre sozinho. Entretanto, suas lembranças estão vivas, e isso o machuca ao ponto de querer negar sua essência humana. Como último recurso para expiar suas culpas resta-lhe a solidão e mais nada.

Poesia de cunho existencialista, inquisidora das angústias e perplexidades humanas, supérflua na aparência, na medida em que é voltada para a interioridade do poeta, na verdade, é uma poesia que reflete as dores do mundo, ou melhor, a dor de todo mundo. Daí a sua complexidade. É o tipo de poesia mais fácil de ser encontrado, resultante de qualquer banal dor de cotovelo. Difícil é encontrá-lo com arte. Difícil é convencer ao leitor de que aquela dor, mesmo não sendo a sua, poderia ser sua. Lendo o poema de Antísthenes Pinto, mesmo quem não esteja naquele estado de espírito, reconhecerá a poesia que se projeta a partir das palavras: o homem exilado de si mesmo, tomado pela angústia de, a despeito da condição humana, preferir a solidão dos ermos, onde acalentará os ninhos das aves que habitam seu coração dormente.   

Noturno (Mauri Mrq e Antísthenes Pinto).