·Quatro movimentos (1975, mudado, na 6ª edição, para Quatuor,
2006)
·O crisântemo de cem pétalas (1985, com Roberto Evangelista)
·Quarteto – obra reunida (1998)
·Satori (1999)
RONDEL DO TUCUMÃ
(XXIV)
do teuminúsculo coquinho
relatam lendas
milenárias
brotaram sono,
amor, carinho,
a lua e as
outras luminárias;
onças e pássarosnoturnos,
quanto emteubojo
se escondia
dele fugiu comaressoturnos
enquanto o breu
se derretia;
tu foste a caixa
de Pandora
das tribos
bárbaras de outrora
e a cor
das asas da graúna
saiu de ti comoumtrovão
paraque
a filha da boiuna
pudesse amar
na escuridão
RONDEL DO CUPUAÇU
(XXVI)
cupuaçu
és soberano
do pomolário
americano
num cofrepardo
guardascomciúmes
rarossabores
vivosperfumes
urnaselvagem,
ubresilvestre,
morenoseio,
tantadelícia
tua curvacrosta
retém no meio
Sol de feira é um
dos livrosmaisemblemáticos da poesiaamazonense e, porextensão, da poesiabrasileira: regionalista na aparência, poucas coleções
de poemassão
dotadas de tanta universalidade.
Arquitetado comoummural de Rivera, ondecadafiguraguardaumsímbolo e cadasímbolo se relaciona com os outrosemrígidasimetria, Sol de feira tem a simplicidade
das grandescriações.
São 50 poemas,
todos na forma
rondel – uma formapoética
de origemmedieval
–, com 14 versos,
em duas estâncias:
a primeira de 8 e a segunda
de 6 versos, todos
de 4 sílabas, apresentando uma variante, a cadamúltiplo de 12, comversos de oito
sílabas.
Não há comosairileso da leitura de Sol de feira e sua profusão de sons, cores e figuras
de linguagem, pulsantes a cadapoema,
numa explosão de criatividade,
quenão
se esgotanunca,
passando das referências míticas
amazônicas, tão nossas, à multimilenar mitologiagrega,
guardando, com uma e comoutra, conexões inesperadas, tendo porsuporteumtoque de sutilhumor e umlevesopro de sensualidade. EmSol de feiranada é excessivo:
todas as imagens, todos
os sons, todas as palavras,
têm uma funçãodentro
da urdidura do poema.
Não se trata
de uma feiraordinária,
onde se busca
o alimentopara o corpo,
mas de uma feirametafísica,
ondecadafrutoforja
uma relação de espiritualidadeentre o leitor
e o texto, e o sagrado
promove interações imediatas com o universo,
permitindo uma totalintegraçãoentre
as realidades perceptíveis e
imagináveis. Esse intricado mágico de sensações
tangencia, semnunca
se chocar, umleque de reflexõesquesãopequenascápsulaslíricas variegadas: o âmagomesmo de cadapoema, seudiscursoformal,
quenão
tem leituraoutrasenão o próprioprazerhedonista
da leitura.
“Rondel do Tucumã”
reconta de formaconcisa
a lendanativa
do aparecimento da noite.
No princípio dos tempos,
não existiam as trevas.
A claridade dominava tudo,
todo o tempo.
Aliás, nem havia o tempo,
poisnãoerapossível
dimensioná-lo. A noite estava adormecida
no fundo do rio.
A filha da Boiuna, a Cobra-Grande,
apaixonara-se porumguerreiro da terra,
mas, acostumada à escuridão,
recusa-se a dormircomeleenquantonão houver noitesobre a terra.
Ela diz quesuamãe
tem a noite; se ele
quiser pode mandar buscá-la, seguindo a trilha do rio. O guerreiro ordena, então,
quetrês
de seusservosmaisleaisvão ao encontro
da Boiuna, quelhes
dará a noite. Ao encontrarem a rainha das profundezas do rio,
esta lhesentregaumcaroço
de tucumã, partidoemdois, mas
fechado combreu,
recomendando-lhes que fosse entregue a suafilha, a únicaque
saberia a horacerta
de romper o “minúsculo
coquinho”.
Vocêjá
deve ter adivinhado o final
da estória: os trêsnão resistem à curiosidade,
derretem o breu, e partem emdois o caroço, fazendo comque a noite
surgisse antes da hora,
causando profundas transformações na terra: objetos e frutos
se transformam emanimais,
pássaros e peixes;
os sons da terrasãoouvidospelaprimeiravez, as trevas
cobrem o mundo. A filha
da Boiuna intervém parabotarordem no caos,
separando o dia da noite.
Os infiéis transformam-se emmacacos, cujaboca, preta e pelada, é a marca
deixada pelobreu
derretido.
O que
contei nosdoisparágrafosacima
o poeta sintetizou na primeiraestrofe do poema.
Na segundaestrofe,
ele compara o tucumã da Boiuna com a caixa de Pandora, da mitologiagrega,
a primeiramulher,
que abriu, porcuriosidade, uma caixaonde estavam guardados os males da humanidade,
libertando-os, numa metáfora da passagem de uma condiçãoparadisíacapara
o estágioemque a humanidade
deve guiar o própriodestino, sem a interferência dos deuses.
No belomitoamazônida, recriado commaestriapor
Luiz Bacellar, a desobediência foi positiva, pois criou novasformas de
vida e harmonizou o ciclo diário entre a claridade e as trevas, o dia e
a noite. E assim,
podendo amar na escuridão,
a filha da Boiuna e seuamado foram felizespara sempre.
No poema
“Rondel do cupuaçu”, aquelelevesopro
de sensualidade a queme referi acima
se transforma emventoforte. Masnãonos
adiantemos. Na primeiraestrofe, o poeta diz que o cupuaçu é “soberano / do pomolário / americano”.
Seria prosaico se o cupuaçu
fosse umpomo,
como o cajuou a maçã.
Porissoele é um
“cofrepardo”,
queguarda
“comciúmes
/ rarossabores
/ vivosperfumes”.
Essas palavras – ciúmes,
sabores, perfumes
– não estão aígratuitamente, comonão está a palavra
pomolário, quederiva
de pomo, “frutacarnuda” e também
“seio de mulher”,
conforme o Houaiss. Daí a beleza
da segundaestrofe,
queeunão vou repetir,
poisnão há nada a explicar, mas sei quevocê vai voltarparaler. Simplicidade
e beleza, poesia
de altíssima tensão.