Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Lira da Madrugada – Luiz Bacellar 4/15

 

Zemaria Pinto

 

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Luiz Bacellar

Nome completo: Luiz Franco de Sá Bacellar

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 4 de setembro de 1928

Falecimento: 9 de setembro de 2012

 

Obra poética:

·       Frauta de barro (1963)

·       Sol de feira (1973)

·       Quatro movimentos (1975, mudado, na 6ª edição, para Quatuor, 2006)

·       O crisântemo de cem pétalas (1985, com Roberto Evangelista)

·       Quarteto – obra reunida (1998)

·       Satori (1999)


RONDEL DO TUCUMÃ

(XXIV)

 

 

do teu minúsculo coquinho

relatam lendas milenárias

brotaram sono, amor, carinho,

a lua e as outras luminárias;

onças e pássaros noturnos,

quanto em teu bojo se escondia

dele fugiu com ares soturnos

enquanto o breu se derretia;

 

tu foste a caixa de Pandora

das tribos bárbaras de outrora

e a cor das asas da graúna

saiu de ti como um trovão

para que a filha da boiuna

pudesse amar na escuridão

 

 

 

RONDEL DO CUPUAÇU

(XXVI)

 

 

cupuaçu

és soberano

do pomolário

americano

num cofre pardo

guardas com ciúmes

raros sabores

vivos perfumes

 

urna selvagem,

ubre silvestre,

moreno seio,

tanta delícia

tua curva crosta

retém no meio

 

 

Sol de feira é um dos livros mais emblemáticos da poesia amazonense e, por extensão, da poesia brasileira: regionalista na aparência, poucas coleções de poemas são dotadas de tanta universalidade. Arquitetado como um mural de Rivera, onde cada figura guarda um símbolo e cada símbolo se relaciona com os outros em rígida simetria, Sol de feira tem a simplicidade das grandes criações. São 50 poemas, todos na forma rondel – uma forma poética de origem medieval –, com 14 versos, em duas estâncias: a primeira de 8 e a segunda de 6 versos, todos de 4 sílabas, apresentando uma variante, a cada múltiplo de 12, com versos de oito sílabas.

Nãocomo sair ileso da leitura de Sol de feira e sua profusão de sons, cores e figuras de linguagem, pulsantes a cada poema, numa explosão de criatividade, que não se esgota nunca, passando das referências míticas amazônicas, tão nossas, à multimilenar mitologia grega, guardando, com uma e com outra, conexões inesperadas, tendo por suporte um toque de sutil humor e um leve sopro de sensualidade. Em Sol de feira nada é excessivo: todas as imagens, todos os sons, todas as palavras, têm uma função dentro da urdidura do poema. Não se trata de uma feira ordinária, onde se busca o alimento para o corpo, mas de uma feira metafísica, onde cada fruto forja uma relação de espiritualidade entre o leitor e o texto, e o sagrado promove interações imediatas com o universo, permitindo uma total integração entre as realidades perceptíveis e imagináveis. Esse intricado mágico de sensações tangencia, sem nunca se chocar, um leque de reflexões que são pequenas cápsulas líricas variegadas: o âmago mesmo de cada poema, seu discurso formal, que não tem leitura outra senão o próprio prazer hedonista da leitura.

“Rondel do Tucumã” reconta de forma concisa a lenda nativa do aparecimento da noite. No princípio dos tempos, não existiam as trevas. A claridade dominava tudo, todo o tempo. Aliás, nem havia o tempo, pois não era possível dimensioná-lo. A noite estava adormecida no fundo do rio. A filha da Boiuna, a Cobra-Grande, apaixonara-se por um guerreiro da terra, mas, acostumada à escuridão, recusa-se a dormir com ele enquanto não houver noite sobre a terra. Ela diz que sua mãe tem a noite; se ele quiser pode mandar buscá-la, seguindo a trilha do rio. O guerreiro ordena, então, que três de seus servos mais leais vão ao encontro da Boiuna, que lhes dará a noite. Ao encontrarem a rainha das profundezas do rio, esta lhes entrega um caroço de tucumã, partido em dois, mas fechado com breu, recomendando-lhes que fosse entregue a sua filha, a única que saberia a hora certa de romper o “minúsculo coquinho”.

Você deve ter adivinhado o final da estória: os três não resistem à curiosidade, derretem o breu, e partem em dois o caroço, fazendo com que a noite surgisse antes da hora, causando profundas transformações na terra: objetos e frutos se transformam em animais, pássaros e peixes; os sons da terra são ouvidos pela primeira vez, as trevas cobrem o mundo. A filha da Boiuna intervém para botar ordem no caos, separando o dia da noite. Os infiéis transformam-se em macacos, cuja boca, preta e pelada, é a marca deixada pelo breu derretido.

O que contei nos dois parágrafos acima o poeta sintetizou na primeira estrofe do poema. Na segunda estrofe, ele compara o tucumã da Boiuna com a caixa de Pandora, da mitologia grega, a primeira mulher, que abriu, por curiosidade, uma caixa onde estavam guardados os males da humanidade, libertando-os, numa metáfora da passagem de uma condição paradisíaca para o estágio em que a humanidade deve guiar o próprio destino, sem a interferência dos deuses. No belo mito amazônida, recriado com maestria por Luiz Bacellar, a desobediência foi positiva, pois criou novas formas de vida e harmonizou o ciclo diário entre a claridade e as trevas, o dia e a noite. E assim, podendo amar na escuridão, a filha da Boiuna e seu amado foram felizes para sempre.

No poema “Rondel do cupuaçu”, aquele leve sopro de sensualidade a que me referi acima se transforma em vento forte. Mas não nos adiantemos. Na primeira estrofe, o poeta diz que o cupuaçu é “soberano / do pomolário / americano”. Seria prosaico se o cupuaçu fosse um pomo, como o caju ou a maçã. Por isso ele é umcofre pardo”, que guardacom ciúmes / raros sabores / vivos perfumes”. Essas palavrasciúmes, sabores, perfumesnão estão gratuitamente, como não está a palavra pomolário, que deriva de pomo, “fruta carnuda” e tambémseio de mulher”, conforme o Houaiss. Daí a beleza da segunda estrofe, que eu não vou repetir, pois nãonada a explicar, mas sei que você vai voltar para ler. Simplicidade e beleza, poesia de altíssima tensão. 

 

Rondel do Tucumã.

Rondel do Cupuaçu.