Amigos do Fingidor

domingo, 21 de janeiro de 2024

AI DE TI, MANAUS: OU UM APELO A RUBEM BRAGA


José Alcimar de Oliveira*

Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão (Rubem Braga)

          01. As breves sete notas em forma de manifesto são aqui dedicadas: a) ao povo da Comunidade da Ponte, do igarapé São Vicente, Bairro do Céu, vizinha ao centro de Manaus, devastada ontem (20 de janeiro de 2024) por um incêndio proporcional à omissão que bem caracteriza o poder público desta cidade; b) igualmente à Elvira Eliza França, lutadora social que faz da cidade de Manaus (tão maltratada e escarnecida por sua classe dominante e pelo descaso programático de seguidos governantes) o seu campo de embate (generoso, intelectual, terapêutico, anônimo) em favor de quantas e quantos têm sobre suas vidas o peso e o pesadelo cotidianos da miséria socialmente produzida pela ordem assassina do capital.

          02. Manaus é o exemplo, desde longo prazo, de um infame laboratório social (de sofrimento e nefasta política) que dá matéria e forma ao seu reverso Plano Diretor.  “Antes de te perder eu agravarei a tua demência – ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão”. O que faz de uma cidade uma cidade é a garantia, formalmente estabelecida desde a Antiguidade Clássica, de dois princípios: a isonomia e a isegoria. Isonomia como igualdade de seus moradores aos direitos politicamente definidos. Isegoria como direito coletivo de manifestação política e de uso público da razão.    

          03. Elvira Eliza França é a manifestação personificada do sentido do cuidado social e da solidariedade humana numa cidade adoecida, hostil, surda diante da tragédia social que se naturaliza como forma de vida para seus habitantes pobres e dos quais sua camada burguesa se abriga e se afasta em indecoroso conforto. Até quando? Quando na cidade domina a ordem do capital sem controle social, temos, como é o caso de Manaus, uma cidade partida, em que para a maioria da população só resta a inclusão pela porta do rebaixamento de direitos.  Ai de ti, Manaus! É de ti, também, que fala Rubem Braga em sua crônica antológica de 1958, Ai de ti, Copacabana!, que me serviu de guia literário para falar da Manaus de 2024. 

         04. Sobre Rubem Braga testemunha Clarice Lispector: “Gostei dele à primeira vista. Sei coisas a seu respeito. Por exemplo, bondades que faz discretamente sem pedir nada em troca. Por exemplo, ele é a pessoa que perdoa muito e entende tudo e não se faz juiz de ninguém. Ele é corajoso. Simples. Delicado”. Dele, o registro: “Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite”. Sobre Manaus, diria: já te chamaram Paris dos Trópicos. Mas de Paris preferiste apenas bons modos e perfumaria e nada aprendeste da Comuna de 1871. Pior: renegas com o reacionarismo de tua classe dominante o espírito da Cabanagem que te fez irredenta 35 anos antes da experiência comunal do proletariado em Paris.   

          05. É sobre ti, Manaus, que a luminosidade da crônica de Rubem Braga me ajudou pensar as tuas sombras e cinzas.  Ontem, 20 de janeiro de 2024, foste outra vez agredida pelo Nero pós-moderno que habita coração e mente de teus agentes de poder (econômico, político, administrativo), e queimaste teu povo à beira do rio, em mais um incêndio às margens do belo e maltratado rio Negro, que insiste, mas já não tem meios nem força para limpar a sujeira que te envolve o corpo e a alma. Ai de ti, Manaus! Como te fizeste pobre e miserável ao rejeitar a sabedoria étnica de tua ontologia indígena e caboca. 

          06. O que pode Elvira Eliza França fazer no contracurso da insana trajetória que te leva e te mantém no cume das piores estatísticas sociais?  Como pode conspurcar e deformar tua simbiose natureza-cultura quem te faz declarações de amor, enaltece tuas belezas e te enche de promessas?  “Ai de ti, Copacabana (Manaus), porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas”. Por que, Manaus, continuas, crente, a cultivar fascínio por quem te devota ódio e desprezo? Quando a cidade nega a política, reforça politicamente a pior política. Democracia como poder do povo implica que o povo encontre na política sua força teórica (consciência de classe) e a política encontre no povo sua força material (organização de classe). 

          07. Quem poderá enxugar as tuas lágrimas, Manaus? Quem poderá te salvar de ti mesma? Por que teus templos seguem cheios de almas vazias, com preces que só conhecem e se destinam ao culto da prosperidade e da acumulação, sempre à custa do sacrifício de quem nada mais tem a ser sacrificado? “Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana (e Manaus), e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?”. De quantos incêndios necessitas, Manaus, para que a cegueira voluntária de teus homens de bens, bem devotados à engenharia do mal e da barbárie, seja algum dia penetrada pelas imagens da tragédia social em que se transformou o cotidiano de tua gente? 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões, no Amazonas, e Jaguaribe, no Ceará. 

Em Manaus, AM, 21 de janeiro de 2024.