Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Elson
Farias
Nome completo: Elson Bentes Farias
Naturalidade: Itacoatiara – AM
Nascimento: 11 de junho de 1936
Obra poética:
· Barro verde
(1961)
· Estações da várzea (1963)
· Três episódios do rio (1965)
· Ciclo das águas (1966)
· Dez canções primitivas (1969)
· Um romanceiro da criação (1969)
· Do amor e da fábula (1970)
· Imagem (1976)
· Roteiro lírico de Manaus em 1900 (1977)
· Made in Amazonas (1978)
· Palavra natural
(1980)
· Romanceiro
(1985)
· Balada de Mira-anhanga e outras aparições (1995)
· A destruição adiada (2002)
· Semibreves & exercícios de harmonia (2006)
ROMANCE DO BANHO
Era morena tostada,
forte, esbelta como um cão,
os cabelos eram claros
de saboroso castanho;
longas tiras escorriam
na costa vincada em curvas
– eram cobras encravadas
no dorso de uma raiz;
o calcanhar era firme,
seu andar arroliçado,
as ilhargas mal roçavam
nas pregas da saia fina.
*
Fendeu-se o cerrado verde
de patativas e anus,
filhos de caba, sol quente,
ventos gerais, água e mel;
ela vinha – balde, cuia,
dentes expostos, carnudos
os lábios, flor de papoula
a cantar e a se despir.
*
Ela vinha, mas menino
balador de passarinhos,
não sabia descobri-la;
pressentia apenas vagos
sons das patas elegantes
dos poldros do meu instinto,
rachando cones de pedra
no meu raciocínio mole.
*
Ela esfalfou-se nas águas,
misturou-se com os peixes,
camarões a beliscaram,
escamas, pés, gumes virgens;
o relampejo das palmas
como línguas de uma faca;
a sombra escura no fundo,
as coxas alvas e turvas;
peixes, menina de banho,
anáguas brancas ao sol.
Elson Farias tem boa
parte de sua obra alicerçada sobre o modo de viver interiorano, reflexo de sua trajetória
e experiência. Seus poemas são espontâneos, especialmente na série dos
“romances”, falando da vida do homem da Amazônia e – acrescentaria o próprio
autor, na epígrafe de um de seus livros – da sua fantasia.
“Romance do banho” estava
no primeiro livro de Elson Farias, Barro
verde, de 1961. Posteriormente, em 1985, o autor publicou Romanceiro, onde reuniu as suas
composições com características de romances: poemas narrativos, vazados, quase
sempre, em redondilhas maiores, sem rimas, tratando de “casos” típicos da vida
ribeirinha. Neste, o poema de que vamos nos ocupar está reunido a outros dois
sob o título “Três romances da infância”.
É importante ressaltar a
tradição do romance, de raízes medievais, narrativas de episódios aventureiros,
galantes e amorosos, guardando parentesco distante com o poema épico, reservado
às narrativas de maior fôlego, a celebrar as grandes conquistas nacionais. O
passar do tempo transformou a narrativa poética em prosa, dando origem ao
romance como o conhecemos hoje, mas a tradição na poesia permanece até nossos
dias. Não é leviano supor que Federico García Lorca (1898-1936), poeta espanhol
dos mais influentes do século 20, teve, com o seu Romanceiro Gitano, papel fundamental na formação do então jovem
poeta Elson Farias.
“Romance do banho” conta a
aventura vivida por um menino, talvez em seu primeiro “alumbramento”, para
usarmos a palavra cara a Manuel Bandeira, quando viu, o coração aos saltos,
“uma moça nuinha no banho”. O poema de Elson Farias registra o fato, em
primeira pessoa, ressaltando, com o recato possível, toda a sensualidade do
episódio.
Dividido em quatro
estrofes, separadas por um sinal que funciona como um separador temporal, o
poema tem quatro momentos distintos:
Momento 1. O poeta
descreve a moça, dando ênfase ao modo como ela anda. Essa escolha é bastante
feliz, pois nos coloca numa posição de voyeurs, observando a moça do mesmo
ângulo do menino. As imagens procuram ressaltar as formas da moça: morena
tostada / forte / cabelos claros / castanhos / de longas tiras / costa vincada
em curvas / calcanhar firme / andar arroliçado. Duas imagens ligadas a
animais reforçam o retrato da moça: esbelta como um cão, referindo-se ao
seu andar imponente; – eram cobras encravadas / no dorso de uma raiz,
alusão aos seus cabelos. Em poesia, a comparação do ser humano com animais se
dá para realçar sua beleza, fortaleza ou sensualidade. A primeira visão da moça
já “tocou” o menino em seus instintos mais primitivos, ainda, provavelmente,
desconhecidos.
Momento
Momento 3. Aqui temos nova metáfora animalizadora – as imagens de
poldros, potros, cavalos, têm nítida conotação sexual –, ressaltando aquilo que
já percebíamos no momento anterior: a volúpia sentida pelo menino, que não
sabia exatamente como agir diante da visão inusitada, e a consciência tênue de
que os “poldros” do seu instinto, rachando cones de pedra,
manifestavam-se duramente no seu “raciocínio mole”. Uma forma poética de dizer
que a visão o perturbava a tal ponto, que ele sentia-se fraco mentalmente,
temendo cometer, num impulso incontrolável, ações das quais depois poderia
arrepender-se.
Momento 4. Neste ponto, já algum tempo é passado desde que a moça
entrou n’água. Sabemos disso pelo tempo do verbo: “esfalfou-se”. Sabiamente, o
menino não saiu de seu lugar, observando-a, tentando adivinhar o que acontecia.
Ele imagina o corpo da moça na água, entre os peixes, os camarões; imagina seus
pés roçados pelos “gumes virgens” das escamas; o movimento das palmeiras como
línguas; as coxas da moça, e a “sombra escura” no fundo... Toda a sensualidade
esboçada na mente do personagem é transformada em linguagem pelo poeta. Por
derradeira, a imagem das anáguas brancas ao sol é o ápice da claridade
vislumbrada: prazer e revelação. O menino pode, enfim, relaxar.
Então, aos 25 anos, Elson Farias trabalha com as sutilezas da
linguagem, como um velho mestre, senhor do seu ofício: a primeira leitura é
apenas a superfície vislumbrada, a água cristalina, soprada pela brisa matinal.
Para saber o que há dentro da água espessa do poema, é preciso cultivar a
paciência necessária, e mergulhar no perau.