Amigos do Fingidor

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Lira da Madrugada – Elson Farias 13/15


Zemaria Pinto

 

 

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Elson Farias

Nome completo: Elson Bentes Farias

Naturalidade: Itacoatiara – AM

Nascimento: 11 de junho de 1936

 

Obra poética:

·       Barro verde (1961)

·       Estações da várzea (1963)

·       Três episódios do rio (1965)

·       Ciclo das águas (1966)

·       Dez canções primitivas (1969)

·       Um romanceiro da criação (1969)

·       Do amor e da fábula (1970)

·       Imagem (1976)

·       Roteiro lírico de Manaus em 1900 (1977)

·       Made in Amazonas (1978)

·       Palavra natural (1980)

·       Romanceiro (1985)

·       Balada de Mira-anhanga e outras aparições (1995)

·       A destruição adiada (2002)

·       Semibreves & exercícios de harmonia (2006)


ROMANCE DO BANHO

                             

 

Era morena tostada,

forte, esbelta como um cão,

os cabelos eram claros

de saboroso castanho;

longas tiras escorriam

na costa vincada em curvas

– eram cobras encravadas

no dorso de uma raiz;

o calcanhar era firme,

seu andar arroliçado,

as ilhargas mal roçavam

nas pregas da saia fina.

 

                *

Fendeu-se o cerrado verde

de patativas e anus,

filhos de caba, sol quente,

ventos gerais, água e mel;

ela vinha   – balde, cuia,

dentes expostos, carnudos

os lábios, flor de papoula

a cantar e a se despir.

 

                 *

Ela vinha, mas menino

balador de passarinhos,

não sabia descobri-la;

pressentia apenas vagos

sons das patas elegantes

dos poldros do meu instinto,

rachando cones de pedra

no meu raciocínio mole.

 

                  *

Ela esfalfou-se nas águas,

misturou-se com os peixes,

camarões a beliscaram,

escamas, pés, gumes virgens;

o relampejo das palmas

como línguas de uma faca;

a sombra escura no fundo,

as coxas alvas e turvas;

peixes, menina de banho,

anáguas brancas ao sol.

 

Elson Farias tem boa parte de sua obra alicerçada sobre o modo de viver interiorano, reflexo de sua trajetória e experiência. Seus poemas são espontâneos, especialmente na série dos “romances”, falando da vida do homem da Amazônia e – acrescentaria o próprio autor, na epígrafe de um de seus livros – da sua fantasia.

“Romance do banho” estava no primeiro livro de Elson Farias, Barro verde, de 1961. Posteriormente, em 1985, o autor publicou Romanceiro, onde reuniu as suas composições com características de romances: poemas narrativos, vazados, quase sempre, em redondilhas maiores, sem rimas, tratando de “casos” típicos da vida ribeirinha. Neste, o poema de que vamos nos ocupar está reunido a outros dois sob o título “Três romances da infância”.

É importante ressaltar a tradição do romance, de raízes medievais, narrativas de episódios aventureiros, galantes e amorosos, guardando parentesco distante com o poema épico, reservado às narrativas de maior fôlego, a celebrar as grandes conquistas nacionais. O passar do tempo transformou a narrativa poética em prosa, dando origem ao romance como o conhecemos hoje, mas a tradição na poesia permanece até nossos dias. Não é leviano supor que Federico García Lorca (1898-1936), poeta espanhol dos mais influentes do século 20, teve, com o seu Romanceiro Gitano, papel fundamental na formação do então jovem poeta Elson Farias.

“Romance do banho” conta a aventura vivida por um menino, talvez em seu primeiro “alumbramento”, para usarmos a palavra cara a Manuel Bandeira, quando viu, o coração aos saltos, “uma moça nuinha no banho”. O poema de Elson Farias registra o fato, em primeira pessoa, ressaltando, com o recato possível, toda a sensualidade do episódio.

Dividido em quatro estrofes, separadas por um sinal que funciona como um separador temporal, o poema tem quatro momentos distintos:

Momento 1. O poeta descreve a moça, dando ênfase ao modo como ela anda. Essa escolha é bastante feliz, pois nos coloca numa posição de voyeurs, observando a moça do mesmo ângulo do menino. As imagens procuram ressaltar as formas da moça: morena tostada / forte / cabelos claros / castanhos / de longas tiras / costa vincada em curvas / calcanhar firme / andar arroliçado. Duas imagens ligadas a animais reforçam o retrato da moça: esbelta como um cão, referindo-se ao seu andar imponente; – eram cobras encravadas / no dorso de uma raiz, alusão aos seus cabelos. Em poesia, a comparação do ser humano com animais se dá para realçar sua beleza, fortaleza ou sensualidade. A primeira visão da moça já “tocou” o menino em seus instintos mais primitivos, ainda, provavelmente, desconhecidos.

Momento 2. A moça, sem pressentir que é observada, começa a cantar e a se despir. O poeta metaforiza a inocência da moça comparando-a a uma flor de papoula. Não custa lembrar, entretanto, que essa flor contém substâncias entorpecentes, base para a fabricação de drogas pesadas, como a morfina e a heroína. Esse duplo sentido incita a dúvida no leitor mais experiente: a moça estaria agindo de caso pensado? Nesse momento, o mundo entra em ebulição, para o menino, que mistura as imagens percebidas, sem nenhuma ordem aparente, como se estivesse tonto: patativas e anus; marimbondos, sol e vento; água e mel. A moça, um sorriso nos dentes por trás dos lábios carnudos, começa a tirar a roupa.

Momento 3. Aqui temos nova metáfora animalizadora – as imagens de poldros, potros, cavalos, têm nítida conotação sexual –, ressaltando aquilo que já percebíamos no momento anterior: a volúpia sentida pelo menino, que não sabia exatamente como agir diante da visão inusitada, e a consciência tênue de que os “poldros” do seu instinto, rachando cones de pedra, manifestavam-se duramente no seu “raciocínio mole”. Uma forma poética de dizer que a visão o perturbava a tal ponto, que ele sentia-se fraco mentalmente, temendo cometer, num impulso incontrolável, ações das quais depois poderia arrepender-se.

Momento 4. Neste ponto, já algum tempo é passado desde que a moça entrou n’água. Sabemos disso pelo tempo do verbo: “esfalfou-se”. Sabiamente, o menino não saiu de seu lugar, observando-a, tentando adivinhar o que acontecia. Ele imagina o corpo da moça na água, entre os peixes, os camarões; imagina seus pés roçados pelos “gumes virgens” das escamas; o movimento das palmeiras como línguas; as coxas da moça, e a “sombra escura” no fundo... Toda a sensualidade esboçada na mente do personagem é transformada em linguagem pelo poeta. Por derradeira, a imagem das anáguas brancas ao sol é o ápice da claridade vislumbrada: prazer e revelação. O menino pode, enfim, relaxar.

Então, aos 25 anos, Elson Farias trabalha com as sutilezas da linguagem, como um velho mestre, senhor do seu ofício: a primeira leitura é apenas a superfície vislumbrada, a água cristalina, soprada pela brisa matinal. Para saber o que há dentro da água espessa do poema, é preciso cultivar a paciência necessária, e mergulhar no perau.

Romance do banho 
(Mauri Mrq - Elson Farias)