Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Max
Carphentier
Nome completo: Max Carphentier Luiz da Costa
Naturalidade: Manaus – AM
Nascimento: 29 de abril de 1945
Obra poética:
· Quarta esfera
(1975)
· O Sermão da selva (1979)
· Orfeu do Nazareno (1983)
- Tiara do verde amor (1988)
- Nossa Senhora de Manaus (1995)
- Teresa de Ávila – o êxtase da
muralha (2001)
- Celebração da vida – missa
planetária (2003)
- Sagração do verde (2012)
- Contemplação das cidades (2012)
- Teresa de Lisieux – o sorriso da
luz (2013)
DO URUTAU
Vivendo de morrer do amor perdido,
a alma da cunhã, presa na lua,
às vezes desce sobre a noite, e canta
com o nome de urutau, ave das
sombras,
em que se encarna pra sofrer nos
ramos.
É que Tupã um dia a condenara,
por ter sido infiel, a errar nas
trevas,
penando como fazem as flautas
tristes.
E vem nesse cantar da lua à terra
toda mágoa dos olhos que interrogam
o céu sobre o pesar do amor sozinho,
como o pesar que sofre essa cunhã
que, se um falaz amor tarde traíra,
do verdadeiro amor cedo partira.
A COROA DE ANUNCIAÇÃO XXI
A cada pena o amor nos multiplica,
o Senhor, que na fé nos dá repouso.
E como a fé me falta apenas ouso
cantar do que se acaba a luz que
fica.
Eu vivo e a selva reina sobre
escombros,
e ao nos matarmos desse pó de
encantos,
uma ave infinita em nossos ombros
nos ressuscita lázaros de prantos.
Irmãos, a selva salvaremos, quando
nos amarmos primeiro. Eis por que
agora,
que de amor falo, acreditais na hora
de amor e selva renascer cantando.
E porque Deus só por amor nos guia,
chegas, Amada, e és toda a alegria.
Max Carphentier tem duas
linhas marcantes na sua poesia: a mística, de fundo existencialista e
religioso; e a mítica, onde ele trabalha literariamente a paisagem e o
imaginário amazônicos. Por vezes, como no seu apreciado poema Sermão da Selva, essas vertentes se
imbricam e se tornam uma só, que podemos, por mero reducionismo didático,
denominar de “poesia cristã-amazônica”. No âmbito do Clube da Madrugada, a
poesia de Carphentier diferencia-se da poesia dos também
místicos-existencialistas L. Ruas e Farias de Carvalho exatamente por essa
singular e exuberante cor amazônica. Opção consciente, desde os primeiros
escritos dados a publicidade, a obra poética de Max Carphentier tem um quê de
libertária, sem a preocupação social de Farias de Carvalho, ao mesmo tempo em
que mantém o seu caráter místico em alta densidade, sem a angústia que perpassa
o trabalho de L. Ruas. Entenda o leitor que não estou comparando os três poetas
com a finalidade de estabelecer um juízo de valor, mas unicamente de mostrar
que, a despeito da opção por uma mesma direção, os três trilham caminhos
diferentes.
O livro Tiara do verde amor, de onde foram
extraídos os poemas que analisaremos, dá bem a dimensão dessa poesia que, sendo
profundamente cristã, não perde contato com a ancestralidade atemporal e o
telurismo amazônico, responsáveis, na obra de Max Carphentier, por livros como Nossa Senhora de Manaus e Nosso Senhor das Águas, poesia e novela,
respectivamente. O livro está dividido em três partes: “A Coroa de Anunciação”,
“A Coroa Mitológica” e “A Coroa das Águas”. Na primeira, o tema religioso está
centrado na chegada de uma mulher – a “Amada” –, alegoria do cristianismo,
impondo-se não mais pela violência, como registra a história, mas com a dádiva
do amor e da convivência harmoniosa. A segunda parte reporta aos mitos, à
“religião” da selva, mas não como algo vivo, contemporâneo: são fragmentos
reminiscentes de um tempo remoto, anterior à história, tatuados com os símbolos
do novo tempo. A terceira parte renova-se, telúrica e sensual, numa síntese
entre os dois mundos, que enfim se moldam num só.
O poema “Do urutau”, que
pertence à “Coroa Mitológica”, reproduz uma das muitas histórias que o lendário
caboclo preservou acerca da ave de hábitos noturnos e de natural habilidade
para a camuflagem, cujo canto lembra “uma gargalhada de dor”, segundo Camara
Cascudo anota em seu Dicionário do
Folclore Brasileiro.[1] Chamado
também de mãe-da-lua, além de outros nomes que parecem variações ou corruptelas
do primeiro, o urutau está associado sempre a histórias trágicas e a costumes
relacionados à moral sexual feminina. Uma dessas lendas conta que Tupã unira um
jovem casal, reservando-lhes para o futuro uma missão de muita gravidade. A
jovem esposa, porém, apaixona-se por um marinheiro branco e foge com ele,
provocando a ira do deus. Como castigo, Tupã condena-a a ter sua alma presa na
lua, permitindo-lhe voltar à terra à noite, sob a forma de um pássaro de canto
triste e aterrador. A essa ave o povo tupi chamou de urutau, que quer dizer
“pássaro fantasma”.
Carphentier, ao compor o
poema, foi fiel à narrativa popular, cuidando para que a linguagem poética
reproduzisse de maneira clara, mas sem concessões, toda a dor transmitida pelo
pássaro. Observe, desde o primeiro verso, construído sobre um belo oximoro – vivendo de morrer –, como essa linguagem
se estrutura, em decassílabos brancos. Há pouco a esclarecer. A expressão
“flautas tristes”, por exemplo, pode ter duas leituras: são metáforas para as
almas condenadas por Tupã, que andam a assombrar, pela noite; ou são as flautas
noturnas de Jurupari, cada som com um significado diferente, todos,
invariavelmente, melancólicos.
Mas o canto lúgubre do
pássaro, sendo mais que um lamento, é um desafio a quem o condenou a uma pena
maior que o crime que a jovem cometera. Para dar ideia da extensão dessa dor, o
poeta se refere a “esse cantar da lua à terra”; e os olhos do pássaro
“interrogam o céu” sobre o castigo do “amor sozinho”, como o sofrimento da
moça-urutau,
que, se um falaz amor tarde traíra,
do verdadeiro amor cedo partira.
Pela infidelidade a um
amor que não desejara, que lhe fora imposto pelo deus – ou, quem sabe, por seus
pais –, ela foi condenada a viver eternamente sem amor.
O poema seguinte, da
“Coroa de Anunciação”, trata, complementarmente, de assunto similar, mas vário:
o amor místico que, a despeito do sofrimento cotidiano, tende a crescer, tendo
por suporte a fé. Mas o poeta, inseguro da própria condição de crente,
compromete-se apenas a cantar “do que se acaba a luz que fica”, eternizando o
que lhe vem aos olhos. Do quinto ao oitavo verso, o poeta vê-se morto entre os
escombros, mas o milagre do retorno à vida – “lázaros de prantos” – se dá na
presença da “ave infinita”, metáfora da interferência divina.
Os versos seguintes
repetem o coro do amor necessário à salvação da selva, alegoria da própria
humanidade. O dístico final não poderia ser mais otimista: o prêmio de amor que
o amor de Deus dá ao crente é personificado na chegada da “Amada”, símbolo da felicidade
e da cessação de todo o sofrimento.
A poesia de fundo
religioso faz parte da tradição poética em todas as línguas. O espanhol San
Juan de la Cruz e a mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz, além do inglês John
Donne, são alguns dos nomes mais notáveis. Em português, desde o pioneiro
Anchieta, passando pelo injustamente mal-afamado Gregório de Matos, até os
recentes Jorge de Lima e Murilo Mendes, manteve-se a tradição. A literatura
amazonense tem em Max Carphentier um representante desse legado, tornando a
crença em beleza e a fé em poesia.
1.
Subsídios para uma apresentação da
poesia amazonense: o
GARCIA, Etelvina. Zona Franca de Manaus: história, conquistas
e desafios. Manaus: Norma, Suframa, 2004.
LOUREIRO, Antônio. Síntese da História do Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1978.
RAMA, Ángel. Literatura e Cultura na América Latina. Org. de Flávio Aguiar e
Sandra Guardini T. Vasconcelos, Trad. de Raquel la Corte dos Santos e Elza
Gasparotto, São Paulo: Edusp, 2001.
TUFIC, Jorge. Clube da Madrugada – 30 anos. Manaus: Imprensa Oficial, 1984.
__________ (org.). Pequena Antologia Madrugada. Manaus:
Sérgio Cardoso, 1958.
Obs: Por
justiça, devo citar também as conversas-entrevistas com os escritores Luiz
Bacellar, Anísio Mello, Almir Diniz e Armando de Menezes, que me passaram sua
visão e sua experiência pessoal sobre o assunto.
2.
Informações biobibliográficas
DINIZ, Almir. Acadêmicos imortais do Amazonas – Dicionário biográfico. Manaus:
Uirapuru, 2002.
TELLES, Tenório & KRÜGER, Marcos
Frederico (orgs.). Poesia e poetas do
Amazonas. Manaus: Valer, 2006.
3.
Poemas
ANDRADE, Moacir e outros. I antologia poética ASSEAM. Coordenação:
Gaitano Antonaccio. Manaus: 1997.
BACELLAR, Luiz. Sol de feira. 3.ª ed. Manaus: Puxirum, 1985.
CABRAL, Astrid. De déu em déu – poemas reunidos 1979/1994. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1998.
CARPHENTIER, Max. Tiara do verde amor. 2.ª ed. Manaus:
EDUA, 1999.
CARVALHO, Farias de. Pássaro de cinza. 2.ª ed. Manaus:
Valer, Governo do Estado do Amazonas, 2000.
DINIZ, Almir. Caminhos da alma. Manaus: Imprensa Oficial, 1996.
FARIAS, Elson. Romanceiro. Manaus: Puxirum, 1985.
MELLO, Anísio. Kaleidoscópio. Manaus: Valer, 2002.
MELLO, Thiago de. Vento Geral – Poesia 1951/1981. 2.ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
PENAFORT, Ernesto. Do verbo azul. Manaus: Governo do Estado
do Amazonas, 1988.
PINTO, Antísthenes. Poesia reunida. Manaus: Puxirum, 1987.
RUAS, L. Poemeu. Manaus: Puxirum, 1985.
SILVA, Alencar e. Solo do outono. Manaus: Valer, 2000.
TUFIC, Jorge. Varanda de pássaros. 2.ª ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas,
1980.
WERK, Alcides. Trilha Dágua. 4.ª ed. Manaus: Imprensa Oficial, 1994.
[1]
CASCUDO, Luís da Camara. Dicionário do
folclore brasileiro. 6.ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1988. p. 454.