Amigos do Fingidor

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Lira da Madrugada – Max Carphentier 15/15

Zemaria Pinto

 

 

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Max Carphentier

Nome completo: Max Carphentier Luiz da Costa

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 29 de abril de 1945

 

Obra poética:

·       Quarta esfera (1975)

·       O Sermão da selva (1979)

·       Orfeu do Nazareno (1983)

  • Tiara do verde amor (1988)
  • Nossa Senhora de Manaus (1995)
  • Teresa de Ávila – o êxtase da muralha (2001)
  • Celebração da vida – missa planetária (2003)
  • Sagração do verde (2012)
  • Contemplação das cidades (2012)
  • Teresa de Lisieux – o sorriso da luz (2013)

 

 

DO URUTAU

  

Vivendo de morrer do amor perdido,

a alma da cunhã, presa na lua,

às vezes desce sobre a noite, e canta

com o nome de urutau, ave das sombras,

em que se encarna pra sofrer nos ramos.

É que Tupã um dia a condenara,

por ter sido infiel, a errar nas trevas,

penando como fazem as flautas tristes.

E vem nesse cantar da lua à terra

toda mágoa dos olhos que interrogam

o céu sobre o pesar do amor sozinho,

como o pesar que sofre essa cunhã

        que, se um falaz amor tarde traíra,

        do verdadeiro amor cedo partira.

  

 

A COROA DE ANUNCIAÇÃO XXI

  

A cada pena o amor nos multiplica,

o Senhor, que na fé nos dá repouso.

E como a fé me falta apenas ouso

cantar do que se acaba a luz que fica.

Eu vivo e a selva reina sobre escombros,

e ao nos matarmos desse pó de encantos,

uma ave infinita em nossos ombros

nos ressuscita lázaros de prantos.

Irmãos, a selva salvaremos, quando

nos amarmos primeiro. Eis por que agora,

que de amor falo, acreditais na hora

de amor e selva renascer cantando.

           E porque Deus só por amor nos guia,

           chegas, Amada, e és toda a alegria.


Max Carphentier tem duas linhas marcantes na sua poesia: a mística, de fundo existencialista e religioso; e a mítica, onde ele trabalha literariamente a paisagem e o imaginário amazônicos. Por vezes, como no seu apreciado poema Sermão da Selva, essas vertentes se imbricam e se tornam uma só, que podemos, por mero reducionismo didático, denominar de “poesia cristã-amazônica”. No âmbito do Clube da Madrugada, a poesia de Carphentier diferencia-se da poesia dos também místicos-existencialistas L. Ruas e Farias de Carvalho exatamente por essa singular e exuberante cor amazônica. Opção consciente, desde os primeiros escritos dados a publicidade, a obra poética de Max Carphentier tem um quê de libertária, sem a preocupação social de Farias de Carvalho, ao mesmo tempo em que mantém o seu caráter místico em alta densidade, sem a angústia que perpassa o trabalho de L. Ruas. Entenda o leitor que não estou comparando os três poetas com a finalidade de estabelecer um juízo de valor, mas unicamente de mostrar que, a despeito da opção por uma mesma direção, os três trilham caminhos diferentes.

O livro Tiara do verde amor, de onde foram extraídos os poemas que analisaremos, dá bem a dimensão dessa poesia que, sendo profundamente cristã, não perde contato com a ancestralidade atemporal e o telurismo amazônico, responsáveis, na obra de Max Carphentier, por livros como Nossa Senhora de Manaus e Nosso Senhor das Águas, poesia e novela, respectivamente. O livro está dividido em três partes: “A Coroa de Anunciação”, “A Coroa Mitológica” e “A Coroa das Águas”. Na primeira, o tema religioso está centrado na chegada de uma mulher – a “Amada” –, alegoria do cristianismo, impondo-se não mais pela violência, como registra a história, mas com a dádiva do amor e da convivência harmoniosa. A segunda parte reporta aos mitos, à “religião” da selva, mas não como algo vivo, contemporâneo: são fragmentos reminiscentes de um tempo remoto, anterior à história, tatuados com os símbolos do novo tempo. A terceira parte renova-se, telúrica e sensual, numa síntese entre os dois mundos, que enfim se moldam num só.

O poema “Do urutau”, que pertence à “Coroa Mitológica”, reproduz uma das muitas histórias que o lendário caboclo preservou acerca da ave de hábitos noturnos e de natural habilidade para a camuflagem, cujo canto lembra “uma gargalhada de dor”, segundo Camara Cascudo anota em seu Dicionário do Folclore Brasileiro.[1] Chamado também de mãe-da-lua, além de outros nomes que parecem variações ou corruptelas do primeiro, o urutau está associado sempre a histórias trágicas e a costumes relacionados à moral sexual feminina. Uma dessas lendas conta que Tupã unira um jovem casal, reservando-lhes para o futuro uma missão de muita gravidade. A jovem esposa, porém, apaixona-se por um marinheiro branco e foge com ele, provocando a ira do deus. Como castigo, Tupã condena-a a ter sua alma presa na lua, permitindo-lhe voltar à terra à noite, sob a forma de um pássaro de canto triste e aterrador. A essa ave o povo tupi chamou de urutau, que quer dizer “pássaro fantasma”.

Carphentier, ao compor o poema, foi fiel à narrativa popular, cuidando para que a linguagem poética reproduzisse de maneira clara, mas sem concessões, toda a dor transmitida pelo pássaro. Observe, desde o primeiro verso, construído sobre um belo oximoro – vivendo de morrer –, como essa linguagem se estrutura, em decassílabos brancos. Há pouco a esclarecer. A expressão “flautas tristes”, por exemplo, pode ter duas leituras: são metáforas para as almas condenadas por Tupã, que andam a assombrar, pela noite; ou são as flautas noturnas de Jurupari, cada som com um significado diferente, todos, invariavelmente, melancólicos.

Mas o canto lúgubre do pássaro, sendo mais que um lamento, é um desafio a quem o condenou a uma pena maior que o crime que a jovem cometera. Para dar ideia da extensão dessa dor, o poeta se refere a “esse cantar da lua à terra”; e os olhos do pássaro “interrogam o céu” sobre o castigo do “amor sozinho”, como o sofrimento da moça-urutau,

que, se um falaz amor tarde traíra,

do verdadeiro amor cedo partira.

 

Pela infidelidade a um amor que não desejara, que lhe fora imposto pelo deus – ou, quem sabe, por seus pais –, ela foi condenada a viver eternamente sem amor.

O poema seguinte, da “Coroa de Anunciação”, trata, complementarmente, de assunto similar, mas vário: o amor místico que, a despeito do sofrimento cotidiano, tende a crescer, tendo por suporte a fé. Mas o poeta, inseguro da própria condição de crente, compromete-se apenas a cantar “do que se acaba a luz que fica”, eternizando o que lhe vem aos olhos. Do quinto ao oitavo verso, o poeta vê-se morto entre os escombros, mas o milagre do retorno à vida – “lázaros de prantos” – se dá na presença da “ave infinita”, metáfora da interferência divina.

Os versos seguintes repetem o coro do amor necessário à salvação da selva, alegoria da própria humanidade. O dístico final não poderia ser mais otimista: o prêmio de amor que o amor de Deus dá ao crente é personificado na chegada da “Amada”, símbolo da felicidade e da cessação de todo o sofrimento.

A poesia de fundo religioso faz parte da tradição poética em todas as línguas. O espanhol San Juan de la Cruz e a mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz, além do inglês John Donne, são alguns dos nomes mais notáveis. Em português, desde o pioneiro Anchieta, passando pelo injustamente mal-afamado Gregório de Matos, até os recentes Jorge de Lima e Murilo Mendes, manteve-se a tradição. A literatura amazonense tem em Max Carphentier um representante desse legado, tornando a crença em beleza e a fé em poesia.

Do urutau - A coroa de Anunciação XXI
(Mauri Mrq - Max Carphentier)


 Bibliografia Geral

1.    Subsídios para uma apresentação da poesia amazonense: o Clube da Madrugada

GARCIA, Etelvina. Zona Franca de Manaus: história, conquistas e desafios. Manaus: Norma, Suframa, 2004.

LOUREIRO, Antônio. Síntese da História do Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial, 1978.

RAMA, Ángel. Literatura e Cultura na América Latina. Org. de Flávio Aguiar e Sandra Guardini T. Vasconcelos, Trad. de Raquel la Corte dos Santos e Elza Gasparotto, São Paulo: Edusp, 2001.

TUFIC, Jorge. Clube da Madrugada – 30 anos. Manaus: Imprensa Oficial, 1984.

__________ (org.). Pequena Antologia Madrugada. Manaus: Sérgio Cardoso, 1958.

Obs: Por justiça, devo citar também as conversas-entrevistas com os escritores Luiz Bacellar, Anísio Mello, Almir Diniz e Armando de Menezes, que me passaram sua visão e sua experiência pessoal sobre o assunto.

 

2.    Informações biobibliográficas

DINIZ, Almir. Acadêmicos imortais do Amazonas – Dicionário biográfico. Manaus: Uirapuru, 2002.

TELLES, Tenório & KRÜGER, Marcos Frederico (orgs.). Poesia e poetas do Amazonas. Manaus: Valer, 2006.

 

3.    Poemas

ANDRADE, Moacir e outros. I antologia poética ASSEAM. Coordenação: Gaitano Antonaccio. Manaus: 1997.

BACELLAR, Luiz. Sol de feira. 3.ª ed. Manaus: Puxirum, 1985.

CABRAL, Astrid. De déu em déu – poemas reunidos 1979/1994. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

CARPHENTIER, Max. Tiara do verde amor. 2.ª ed. Manaus: EDUA, 1999.

CARVALHO, Farias de. Pássaro de cinza. 2.ª ed. Manaus: Valer, Governo do Estado do Amazonas, 2000.

DINIZ, Almir. Caminhos da alma. Manaus: Imprensa Oficial, 1996.

FARIAS, Elson. Romanceiro. Manaus: Puxirum, 1985.

MELLO, Anísio. Kaleidoscópio. Manaus: Valer, 2002.

MELLO, Thiago de. Vento Geral – Poesia 1951/1981. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

PENAFORT, Ernesto. Do verbo azul. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 1988.

PINTO, Antísthenes. Poesia reunida. Manaus: Puxirum, 1987.

RUAS, L. Poemeu. Manaus: Puxirum, 1985.

SILVA, Alencar e. Solo do outono. Manaus: Valer, 2000.

TUFIC, Jorge. Varanda de pássaros. 2.ª ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 1980.

WERK, Alcides. Trilha Dágua. 4.ª ed. Manaus: Imprensa Oficial, 1994.

 




[1] CASCUDO, Luís da Camara. Dicionário do folclore brasileiro. 6.ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 454.