Zemaria Pinto
Ficha biobibliográfica
Autor: Ernesto
Penafort
Nome completo: Ernesto da Silva Penafort
Naturalidade: Manaus – AM
Nascimento: 27 de março de 1936
Falecimento: 3 de junho de 1992
Obra poética:
· Azul geral
(1973)
· A medida do azul (1982)
· Os limites do azul (1985)
· Do verbo azul (1988)
DO CORPO, DA MEMÓRIA
eis que surges, noite morta.
nem te adivinhava antes,
já vagava em outras terras,
outros mares me banhavam.
entretanto, estás
presente, suor do corpo.
rastro de quem anda,
amor de quem partiu.
eis que surges, noite morta.
mesmo adivinhar-te
era um absurdo, noite morta.
principalmente agora
que vejo luz e longe,
estás presente, suor do corpo,
memória e tatuagem,
novamente suor do corpo,
estás presente,
memória de quem anda,
suor de quem partiu.
DA DOR MAIOR
líquida é esta noite
em que te encontras distante.
líquida, também,
é esta vontade minha
de te ter nos braços
e amar com toda a força
da minha existência de homem.
belo seria
o momento em que pudesse
de um só golpe sorver-te
mesmo através dos poros
deste corpo que pulsa por ti.
o cântico dos cânticos
não é mais belo do que tu.
e cantar-te, nesta hora,
é para mim o privilégio
que dilata meu coração,
que pulsa por tua vontade,
líquida é esta noite
em que também me umedeço,
orvalhecendo-me por ti,
como se fosse o produto
de um céu sem deuses,
como se fosse o único astro
de um firmamento fechado.
Ernesto Penafort é mais
lembrado por sua obsessão pela cor azul do que pela sua poesia. Apesar de
presente nos quatro títulos que publicou – Azul
geral, A medida do azul, Os limites do azul e O verbo azul –, o azul é apenas um dos
muitos símbolos que povoam a obra desse poeta, desaparecido em plena
inquietação criativa. E o que representa essa constância do azul na poesia de
Penafort? A mais densa das cores, o azul, em suas várias tonalidades, pode
significar o tudo e o nada. Imaginemos a abóbada celeste, num dia claro: vemos
o azul infinito, apenas – e pensamos em quão pequenos somos diante do cosmos
que se descortina sobre nós, mas do qual não vemos nada, além do azul... O azul
está presente nos quatro elementos: no ar, inicialmente invisível, mas representado
pelo próprio firmamento; na terra, nas várias gemas de tons azuis; na água,
especialmente do mar, profundamente azul; e no fogo, com suas labaredas azuis.
O azul é, portanto, símbolo de vida e de finitude, de ação e de morte. Uma das
três cores primárias, o azul é fundamento para a composição de outras cores.
Trata-se, portanto, de um símbolo muito forte. Penafort levou o seu uso à
exaustão, desde a mera expressão pictórica até a simbologia mais complexa, de
cunho espiritual. Mas os poemas que analisaremos, presentes tanto no segundo
como no quarto livro, não têm o azul por tema, embora sua presença seja
latente, na melancolia blues que
deles emana.
Ambos os poemas têm a
noite como tema, mas não a noite simplesmente, qualquer noite. “Do corpo, da
memória”, trata da “noite morta”; “Da dor maior”, da “noite líquida”. A locução
“noite morta” é de vasto uso popular, variante de “noite alta” ou “alta noite”.
Para compormos bem a imagem que o poeta quer transmitir não precisamos definir
um horário, mas as circunstâncias: silêncio total de atividades humanas; ruídos
noturnos, apenas. A noite aqui representa a solidão absoluta, o poeta em
companhia de si mesmo, unicamente.
O poema não permite uma
leitura linear; então, faz-se necessário estabelecer parâmetros para orientar a
leitura. As expressões “outras terras”, “outros mares”, “suor do corpo”, “luz e
longe”, “memória e tatuagem”, além dos verbos andar (“anda”, presente) e partir
(“partiu”, passado) são chaves para a compreensão da expressão poética, de
clara extração simbolista. O poeta, tendo por companhia a extrema solidão,
representada pela “noite morta” – os ruídos noturnos, que não deixam perceber nenhum
som que lembre o humano –, descreve as sensações que aquele momento único lhe
proporciona: a sensação mental (alheamento da realidade – “outras terras”,
“outros mares”) se funde à sensação física (“suor do corpo”), à realidade
imediata, na reiterada imagem da noite morta. O suor do corpo – outra imagem
enfatizada – é “memória e tatuagem” e está presente, trazendo a lembrança do
“suor de quem partiu”. Corpo e memória.
As imagens se confundem
como se o poeta estivesse mentalmente confuso, pois é exatamente essa a ideia
que ele quer passar. Por isso as imagens aparecem desestruturadas, como num
filme em que os quadros estivessem fora de ordem. A ideia é bastante simples: o
poeta sofre com a solidão e com as lembranças deixadas por alguém que partiu.
Essas lembranças, no meio da noite morta, noite quente que o banha de suor, traduzem
a ideia de que aquela ausência está fixada de tal forma em seu íntimo que a
percepção física do próprio suor o leva a sentir o suor da pessoa ausente. Essa
opção por uma aparência desconexa é facultada pela linguagem densa que o poeta
utiliza para comunicar a sua impressão da realidade.
O segundo poema é mais
complexo em sua simbologia: ao substantivo “noite” junta-se o qualificativo
“líquida”, remetendo-nos à ideia de “noite de água”, de imediato promovida a
“noite chuvosa”. Mas não é isso o que o poema diz. Observe que, desde a
primeira estrofe, está clara a distância entre o eu lírico e o objeto de seu
desejo: “te encontras distante”, “vontade minha / de te ter nos braços”. Esse
desejo irrealizado é o fulcro da percepção para a metáfora “noite líquida” – a
noite que passa como o rio de Heráclito, para quem nunca nos banhamos no mesmo
rio, porque as águas não se repetem nunca, renovando-se constantemente. A noite
líquida de Penafort passa como um rio, sem que o poeta possa detê-lo. É uma
situação de pesadelo: o tempo escoando com a certeza de sua irrecuperabilidade.
O tempo aquoso encontra seu par perfeito na noite silenciosa e quente.
A segunda estrofe guarda
uma dualidade:
belo seria
o momento em que
pudesse
de um só golpe
sorver-te
mesmo através dos
poros
deste corpo que
pulsa por ti.
“Sorver-te” a quem? À
noite ou à ausente? O primeiro impulso pode nos levar à segunda opção, mas o
que é líquido, isto é, “sorvível”, é a noite: sorvê-la fará com que ela, a
noite, desapareça. Mas, logo adiante, há a referência que negaria essa hipótese:
“deste corpo que pulsa por ti”. O problema se estende à terceira estrofe, onde
o sujeito novamente não está definido. Mas, aqui, ao contrário, o que é mais
belo que “o cântico dos cânticos” e “que dilata meu coração” já não é mais a
noite, com toda certeza. Essa aparente confusão demonstra o estado mental do eu
lírico, tal como no primeiro poema: fora de si, febril, delirante.
A última estrofe procura
explicar, numa linguagem cifrada, esse estado: “também me umedeço /
orvalhecendo-me por ti”. Apogeu da paradoxal dicotomia desespero-prazer, o
neologismo “orvalhecendo-me” é a pedra de toque desse poema que trata,
sobretudo, da dor maior da solidão. Uma solidão tão densa – tão negra e tão
azul – que exclui até os deuses e as estrelas do céu.
No poema “O poeta e seus
elementos”, Ernesto Penafort, um lírico por excelência, registrara: “o poeta é
um território / em permanente degredo”. Exilado do mundo e de si mesmo, o poeta
não cabe em si, em permanente conflito com o caos. Talvez seja esta a chave
para a compreensão de seus poemas: não lhes basta a simples leitura; é
necessário conhecer, senão a alma do poeta, as suas entranhas; os seus medos
jamais revelados, a não ser na criptografia dos poemas; os seus sonhos mais
recônditos; a sua solidão incorruptível.