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sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Lira da Madrugada – Ernesto Penafort 12/15

 

                                                                                  Zemaria Pinto

 

Ficha biobibliográfica

 

Autor: Ernesto Penafort

Nome completo: Ernesto da Silva Penafort

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 27 de março de 1936

Falecimento: 3 de junho de 1992

 

Obra poética:

·       Azul geral (1973)

·       A medida do azul (1982)

·       Os limites do azul (1985)

·       Do verbo azul (1988)

 

 


DO CORPO, DA MEMÓRIA

 

eis que surges, noite morta.

nem te adivinhava antes,

já vagava em outras terras,

outros mares me banhavam.

entretanto, estás

presente, suor do corpo.

rastro de quem anda,

amor de quem partiu.

 

eis que surges, noite morta.

mesmo adivinhar-te

era um absurdo, noite morta.

principalmente agora

que vejo luz e longe,

estás presente, suor do corpo,

memória e tatuagem,

novamente suor do corpo,

estás presente,

memória de quem anda,

suor de quem partiu.

 

 

DA DOR MAIOR

        

líquida é esta noite

em que te encontras distante.

líquida, também,

é esta vontade minha

de te ter nos braços

e amar com toda a força

da minha existência de homem.

     

belo seria

o momento em que pudesse

de um só golpe sorver-te

mesmo através dos poros

deste corpo que pulsa por ti.

     

o cântico dos cânticos

não é mais belo do que tu.

e cantar-te, nesta hora,

é para mim o privilégio

que dilata meu coração,

que pulsa por tua vontade,

     

líquida é esta noite

em que também me umedeço,

orvalhecendo-me por ti,

como se fosse o produto

de um céu sem deuses,

como se fosse o único astro

de um firmamento fechado.


Ernesto Penafort é mais lembrado por sua obsessão pela cor azul do que pela sua poesia. Apesar de presente nos quatro títulos que publicou – Azul geral, A medida do azul, Os limites do azul e O verbo azul –, o azul é apenas um dos muitos símbolos que povoam a obra desse poeta, desaparecido em plena inquietação criativa. E o que representa essa constância do azul na poesia de Penafort? A mais densa das cores, o azul, em suas várias tonalidades, pode significar o tudo e o nada. Imaginemos a abóbada celeste, num dia claro: vemos o azul infinito, apenas – e pensamos em quão pequenos somos diante do cosmos que se descortina sobre nós, mas do qual não vemos nada, além do azul... O azul está presente nos quatro elementos: no ar, inicialmente invisível, mas representado pelo próprio firmamento; na terra, nas várias gemas de tons azuis; na água, especialmente do mar, profundamente azul; e no fogo, com suas labaredas azuis. O azul é, portanto, símbolo de vida e de finitude, de ação e de morte. Uma das três cores primárias, o azul é fundamento para a composição de outras cores. Trata-se, portanto, de um símbolo muito forte. Penafort levou o seu uso à exaustão, desde a mera expressão pictórica até a simbologia mais complexa, de cunho espiritual. Mas os poemas que analisaremos, presentes tanto no segundo como no quarto livro, não têm o azul por tema, embora sua presença seja latente, na melancolia blues que deles emana.

Ambos os poemas têm a noite como tema, mas não a noite simplesmente, qualquer noite. “Do corpo, da memória”, trata da “noite morta”; “Da dor maior”, da “noite líquida”. A locução “noite morta” é de vasto uso popular, variante de “noite alta” ou “alta noite”. Para compormos bem a imagem que o poeta quer transmitir não precisamos definir um horário, mas as circunstâncias: silêncio total de atividades humanas; ruídos noturnos, apenas. A noite aqui representa a solidão absoluta, o poeta em companhia de si mesmo, unicamente.

O poema não permite uma leitura linear; então, faz-se necessário estabelecer parâmetros para orientar a leitura. As expressões “outras terras”, “outros mares”, “suor do corpo”, “luz e longe”, “memória e tatuagem”, além dos verbos andar (“anda”, presente) e partir (“partiu”, passado) são chaves para a compreensão da expressão poética, de clara extração simbolista. O poeta, tendo por companhia a extrema solidão, representada pela “noite morta” – os ruídos noturnos, que não deixam perceber nenhum som que lembre o humano –, descreve as sensações que aquele momento único lhe proporciona: a sensação mental (alheamento da realidade – “outras terras”, “outros mares”) se funde à sensação física (“suor do corpo”), à realidade imediata, na reiterada imagem da noite morta. O suor do corpo – outra imagem enfatizada – é “memória e tatuagem” e está presente, trazendo a lembrança do “suor de quem partiu”. Corpo e memória.

As imagens se confundem como se o poeta estivesse mentalmente confuso, pois é exatamente essa a ideia que ele quer passar. Por isso as imagens aparecem desestruturadas, como num filme em que os quadros estivessem fora de ordem. A ideia é bastante simples: o poeta sofre com a solidão e com as lembranças deixadas por alguém que partiu. Essas lembranças, no meio da noite morta, noite quente que o banha de suor, traduzem a ideia de que aquela ausência está fixada de tal forma em seu íntimo que a percepção física do próprio suor o leva a sentir o suor da pessoa ausente. Essa opção por uma aparência desconexa é facultada pela linguagem densa que o poeta utiliza para comunicar a sua impressão da realidade.

O segundo poema é mais complexo em sua simbologia: ao substantivo “noite” junta-se o qualificativo “líquida”, remetendo-nos à ideia de “noite de água”, de imediato promovida a “noite chuvosa”. Mas não é isso o que o poema diz. Observe que, desde a primeira estrofe, está clara a distância entre o eu lírico e o objeto de seu desejo: “te encontras distante”, “vontade minha / de te ter nos braços”. Esse desejo irrealizado é o fulcro da percepção para a metáfora “noite líquida” – a noite que passa como o rio de Heráclito, para quem nunca nos banhamos no mesmo rio, porque as águas não se repetem nunca, renovando-se constantemente. A noite líquida de Penafort passa como um rio, sem que o poeta possa detê-lo. É uma situação de pesadelo: o tempo escoando com a certeza de sua irrecuperabilidade. O tempo aquoso encontra seu par perfeito na noite silenciosa e quente.

A segunda estrofe guarda uma dualidade:     

belo seria

o momento em que pudesse

de um só golpe sorver-te

mesmo através dos poros

deste corpo que pulsa por ti.

 

“Sorver-te” a quem? À noite ou à ausente? O primeiro impulso pode nos levar à segunda opção, mas o que é líquido, isto é, “sorvível”, é a noite: sorvê-la fará com que ela, a noite, desapareça. Mas, logo adiante, há a referência que negaria essa hipótese: “deste corpo que pulsa por ti”. O problema se estende à terceira estrofe, onde o sujeito novamente não está definido. Mas, aqui, ao contrário, o que é mais belo que “o cântico dos cânticos” e “que dilata meu coração” já não é mais a noite, com toda certeza. Essa aparente confusão demonstra o estado mental do eu lírico, tal como no primeiro poema: fora de si, febril, delirante.   

A última estrofe procura explicar, numa linguagem cifrada, esse estado: “também me umedeço / orvalhecendo-me por ti”. Apogeu da paradoxal dicotomia desespero-prazer, o neologismo “orvalhecendo-me” é a pedra de toque desse poema que trata, sobretudo, da dor maior da solidão. Uma solidão tão densa – tão negra e tão azul – que exclui até os deuses e as estrelas do céu.

No poema “O poeta e seus elementos”, Ernesto Penafort, um lírico por excelência, registrara: “o poeta é um território / em permanente degredo”. Exilado do mundo e de si mesmo, o poeta não cabe em si, em permanente conflito com o caos. Talvez seja esta a chave para a compreensão de seus poemas: não lhes basta a simples leitura; é necessário conhecer, senão a alma do poeta, as suas entranhas; os seus medos jamais revelados, a não ser na criptografia dos poemas; os seus sonhos mais recônditos; a sua solidão incorruptível.

Do corpo, da memória  Da dor maior
(Mauri Mrq  Ernesto Penafort)