A poesia
de Astrid Cabral tem uma dicçãorara,
senãoúnica,
na poesiabrasileira
contemporânea, desde Ponto de cruz,
seuprimeirolivro de poemas,
onde a seção
“Pequenomundo”
esmiúça rituais do banalcotidiano. Trata-se de uma poesia
visceralmente feminina, não necessariamente feminista,
o que significa uma posturamenos ideológica queestética. Essa poesiafeminina consiste emreconhecer no eulírico, no emissor
da mensagempoética,
a condição de mulher
– comtodos
os seussignos.
A água é um
deles.
O líquido
amniótico é a primeiraformalíquidacom a
qual temos contato.
Assim, a água se ligadiretamentecom
a figura da mãe,
sem a qualnão existe vida,
que, no serhumano, é representada pelamovimentação do líquidosanguíneoemnossocorpo. No
exterior do serhumano, a águatomaformamasculina ao ser o principalfator da fecundação da terra, seja pelachuva,
seja pelomovimento
das águas dos rios.
Na Amazônia, tãocara
a Astrid no livroVisgo da terra, onde
foi publicado o poema “Águadoce”,
numa seçãonão
à toachamada
“Água”, essa dicotomia
água-macho/terra-fêmea encontrasuaintegralrepresentação na área
de várzea, quemetade do ano
fica submersa, sendo fecundada, e onde, na outra
metade do ano, florescem as mais
diversas culturas, que
irão alimentar o ribeirinho
e o citadino.
A água
é umelemento
constante na obrapoética
de Astrid Cabral. O ápice dessa relação
é o premiado livroRasos d’água:
“uma viagemépicapelamemórialíquida, das lágrimas
à neve, banhando-se de chuva, perscrutando o mar,
os rios inúmeros, empermanentetensãocom o pathos da morte,
queora
se aproxima e sangra, ora se afasta e
observa a velhice inevitável, oraapenas
lembra/relembra a dorparasempre represada”, como
escrevi na apresentação da segundaedição. EmRasos d’água,
o eulírico
é umserlíquido, semformadefinida, quetomanovaforma a cadapoema. Para Astrid, a água é
muitomaisque a origem
da vida e metáfora
da criação: numa relaçãodialéticaquenão se esgotanunca, é tambémfonte de morte e de destruição.
O poema
“Águadoce”,
que é a água
da memória, da infância,
guarda a consciência
disso, quando opõe a água do rio à água
do mar, representada sempreporelementosnegativos,
como a “vândalaviolência do mar”,
“a ameaça constante das vagas”
e “a baba de espumas
brabas”. Mas, aos poucos,
essa consciência vai se redefinindo, a memória vai se recompondo, e as lembranças
vêm à tona, sempre
naquela relaçãovida/morte-criação/destruição: “A água
do rio é mansa
/ mastambém
se zanga”. E enumera o lado oposto da águadoce e mansa: banzeiro, enchente,
correnteza, repiquete,
cachoeira, redemoinho.
Paraquem
compartilha essas memóriascom Astrid, essas palavras
podem parecermotivos
de brincadeirasdistantes.
Masela
adverte: o riotransborda
e inunda, arrasta e mata, “afoga quemnão sabe nadar”, “enrola quemnão sabe remar”.
Comonosmitosgregos,
em que os rios
eram considerados filhos do Oceano e pais
das Ninfas, o rio
de Astrid parece dotado de formahumana, pois “também sabe lutar”, e na pororoca “enfrenta e afronta o
mar”. O fenômeno da pororoca
– perdoe-me o leitorcansado de saber disso –
ocorre quando o nível
do Atlântico sobe e uma onda de maré, gigantesca,
invade os riosque
formam o estuário do rioAmazonas, e colide com
a massa de águadoce fluindo na direçãocontrária, causando umgrandeestrondo,
arrastando e destruindo tudo o queencontrapela frente.
O poema
segue, explicando as distintas cores dos
rios, o que
lembra a minhaprimeiraviagem de barcopelorioNegro, aos 9 anos,
e o comentário de alguém,
acerca da cor
da água, agitadacomforçapeloleme do “Augusto
Montenegro”: “parece coca-cola”. A comparação não
fazia o menorsentidoparamim,
pois não sabia que diabos eraaquilo, mas
ficou-me na memóriapormuitosanos,
atéeu
compreender que a analogia ouvida era uma ofensa
à dignidade do velhoNegro.
Na sequência, Astrid compara
os “monstros” do marcom os correspondentes
do rio. E se usei a palavramonstro para a simpática baleia, pensei em
Moby Dick – provávelreferência, literária,
de Astrid. Os monstros do riosãotantos
na memóriaque
cabe atéum
“não sei mais
o quê”, parafechar a enumeração.
O poemaencerracomo se unisse as duas pontas do início
e do fim: começa
afirmado que “a água
do rio é doce”,
paraconcluir, depoisque as lembranças vieram à tona,
que “a águadocenão
é tãodoce.
/ Antes fosse”. Nesse poema, Astrid nãousaapenas
a memória, ela
se expressacomumeulíricoque
tem a idade da suamemória, a idade
da infância. Aliás, o Aurélio registra a
expressão “poeta de água doce” significando “poeta muito jovem”. As frases curtas, aliadas ao desenvolvimento
do poema, que sai de uma certeza (“a água
do rio é doce”)
para uma decepção
(“a águadocenão é tãodoce”), são
típicas de uma idadequenão sabe aindaconstruirumraciocíniocomplexo. Ela, então, arquiteta
uma cadeia de pensamento
fundada no contraditório: primeiroemrelação
ao mar, depoisemrelação
a simesma,
usando sempre a mesmafórmula adversativa (“mas também”), paraconcluircomnova
comparação com o mar.
O eulíricocriança descobre a dialética.
Se a água do rio
fosse mesmodocenão teríamos esse
belo poema.