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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Lira da Madrugada – Astrid Cabral 14/15

Zemaria Pinto

 

 

Ficha biobibliográfica

 

Autora: Astrid Cabral

Nome completo: Astrid Cabral Félix de Souza

Naturalidade: Manaus – AM

Nascimento: 25 de setembro de 1936

 

Obra poética:

·       Ponto de cruz (1979)

·       Torna-viagem (1981)

·       Visgo da terra (1986)

·       Lição de Alice (1986)

·       Rês desgarrada (1994)

·       De déu em déu – poemas reunidos 1979/1994 (1998)

·       Intramuros (1998)

·       Rasos d’água (2003)

·       Jaula (2006)

·       Ante-sala (2007)

·       Palavra na berlinda (2011)

·       Infância em franjas (2014)

 


ÁGUA DOCE

  

A água do rio é doce.

Carece de sal, carece de onda.

A água do rio carece

da vândala violência do mar.

A água do rio é mansa

sem a ameaça constante das vagas

sem a baba de espumas brabas.

A água do rio é mansa

mas também se zanga.

Tem banzeiro, enchente

correnteza e repiquete.

Pressa de corredeira

sobressalto de cachoeira

traição de redemoinho.

A água do rio é mansa

corre em leito estreito.

Mas também transborda e inunda

também é vasta, também é funda

também arrasta, também mata.

Afoga quem não sabe nadar.

Enrola quem não sabe remar.

A água do rio é doce

mas também sabe lutar.

A água doce na pororoca

enfrenta e afronta o mar.

Filha de olho-d’água e de chuva

neta de neve e de nuvem

a água doce é pura

mas também se mistura.

Tem água cor de café

tem água cor de cajá

tem água cor de garapa

tem água que nem guaraná.

A água doce do rio

não tem baleia nem tubarão

tem jacaré, candiru, piranha

poraquê e não sei mais o quê.

A água doce não é tão doce.

Antes fosse.

 


A poesia de Astrid Cabral tem uma dicção rara, senão única, na poesia brasileira contemporânea, desde Ponto de cruz, seu primeiro livro de poemas, onde a seçãoPequeno mundo” esmiúça rituais do banal cotidiano. Trata-se de uma poesia visceralmente feminina, não necessariamente feminista, o que significa uma postura menos ideológica que estética. Essa poesia feminina consiste em reconhecer no eu lírico, no emissor da mensagem poética, a condição de mulhercom todos os seus signos. A água é um deles.

O líquido amniótico é a primeira forma líquida com a qual temos contato. Assim, a água se liga diretamente com a figura da mãe, sem a qual não existe vida, que, no ser humano, é representada pela movimentação do líquido sanguíneo em nosso corpo. No exterior do ser humano, a água toma forma masculina ao ser o principal fator da fecundação da terra, seja pela chuva, seja pelo movimento das águas dos rios. Na Amazônia, tão cara a Astrid no livro Visgo da terra, onde foi publicado o poemaÁgua doce”, numa seção não à toa chamadaÁgua”, essa dicotomia água-macho/terra-fêmea encontra sua integral representação na área de várzea, que metade do ano fica submersa, sendo fecundada, e onde, na outra metade do ano, florescem as mais diversas culturas, que irão alimentar o ribeirinho e o citadino.   

A água é um elemento constante na obra poética de Astrid Cabral. O ápice dessa relação é o premiado livro Rasos d’água: “uma viagem épica pela memória líquida, das lágrimas à neve, banhando-se de chuva, perscrutando o mar, os rios inúmeros, em permanente tensão com o pathos da morte, que ora se aproxima e sangra, ora se afasta e observa a velhice inevitável, ora apenas lembra/relembra a dor para sempre represada”, como escrevi na apresentação da segunda edição. Em Rasos d’água, o eu lírico é um ser líquido, sem forma definida, que toma nova forma a cada poema. Para Astrid, a água é muito mais que a origem da vida e metáfora da criação: numa relação dialética que não se esgota nunca, é também fonte de morte e de destruição.

O poemaÁgua doce”, que é a água da memória, da infância, guarda a consciência disso, quando opõe a água do rio à água do mar, representada sempre por elementos negativos, como a “vândala violência do mar”, “a ameaça constante das vagas” e “a baba de espumas brabas”. Mas, aos poucos, essa consciência vai se redefinindo, a memória vai se recompondo, e as lembranças vêm à tona, sempre naquela relação vida/morte-criação/destruição: “A água do rio é mansa / mas também se zanga”. E enumera o lado oposto da água doce e mansa: banzeiro, enchente, correnteza, repiquete, cachoeira, redemoinho. Para quem compartilha essas memórias com Astrid, essas palavras podem parecer motivos de brincadeiras distantes. Mas ela adverte: o rio transborda e inunda, arrasta e mata, “afoga quem não sabe nadar”, “enrola quem não sabe remar”.

Como nos mitos gregos, em que os rios eram considerados filhos do Oceano e pais das Ninfas, o rio de Astrid parece dotado de forma humana, poistambém sabe lutar”, e na pororoca “enfrenta e afronta o mar”. O fenômeno da pororoca – perdoe-me o leitor cansado de saber disso – ocorre quando o nível do Atlântico sobe e uma onda de maré, gigantesca, invade os rios que formam o estuário do rio Amazonas, e colide com a massa de água doce fluindo na direção contrária, causando um grande estrondo, arrastando e destruindo tudo o que encontra pela frente.

O poema segue, explicando as distintas cores dos rios, o que lembra a minha primeira viagem de barco pelo rio Negro, aos 9 anos, e o comentário de alguém, acerca da cor da água, agitada com força pelo leme do “Augusto Montenegro”: “parece coca-cola”. A comparação não fazia o menor sentido para mim, pois não sabia que diabos era aquilo, mas ficou-me na memória por muitos anos, até eu compreender que a analogia ouvida era uma ofensa à dignidade do velho Negro.

Na sequência, Astrid compara os “monstros” do mar com os correspondentes do rio. E se usei a palavra monstro para a simpática baleia, pensei em Moby Dick – provável referência, literária, de Astrid. Os monstros do rio são tantos na memória que cabe até umnão sei mais o quê”, para fechar a enumeração. O poema encerra como se unisse as duas pontas do início e do fim: começa afirmado que “a água do rio é doce”, para concluir, depois que as lembranças vieram à tona, que “a água doce não é tão doce. / Antes fosse”. Nesse poema, Astrid não usa apenas a memória, ela se expressa com um eu lírico que tem a idade da sua memória, a idade da infância. Aliás, o Aurélio registra a expressão “poeta de água doce” significando “poeta muito jovem”. As frases curtas, aliadas ao desenvolvimento do poema, que sai de uma certeza (“a água do rio é doce”) para uma decepção (“a água doce não é tão doce”), são típicas de uma idade que não sabe ainda construir um raciocínio complexo. Ela, então, arquiteta uma cadeia de pensamento fundada no contraditório: primeiro em relação ao mar, depois em relação a si mesma, usando sempre a mesma fórmula adversativa (“mas também”), para concluir com nova comparação com o mar. O eu lírico criança descobre a dialética. Se a água do rio fosse mesmo doce não teríamos esse belo poema.

Água doce
(Mauri Mrq - Astrid Cabral)