Os
que andam com os mortos, primeiro livro “oficial” de contos
adultos de Zemaria Pinto, é uma provocação. A começar pelo subtítulo, que pulveriza
os substantivos “fábulas” e “estórias” – este, uma provocação, em si mesmo – amalgamando-os
com os adjetivos “cruéis” e “más”, e resultando uma poeira que, nos olhos do
leitor, desafia os limites quadradinhos do gênero.
Invocando Mário de Andrade –
“é conto tudo aquilo que o autor chamar de conto” – e Machado de Assis – “sobre
o gênero, não sei o que diga que não seja inútil” –, Zemaria Pinto constrói em Os que andam com os mortos trinta
narrativas entre a intertextualidade, a metalinguagem e a criação mais
original: “desconforto é a palavra-chave para definir o sentimento que se quer
incutir no leitor”, diz o autor na apresentação que, não à toa, tem por título
um dissimulado “Apenas um livro de contos”.
Assassinatos, manifestações
de loucura mansa até o mais agudo desvario, delírios, pesadelos, metamorfoses –
físicas e mentais –, ais de amor, uivos de dor e outras mágoas supuradas: no
universo do demiurgo não sobra espaço para a vidinha banal, a tal da áurea
mediocridade de que falavam os antigos. Pulsa nessas trinta narrativas o mundo
como vontade e representação, num encontro clandestino entre a poesia e a
filosofia.
Como já se insinuou, os
textos emulam gêneros diversos que vão do conto convencional ao roteiro de
cinema; da fábula à Esopo ao ensaio acadêmico; do texto teatral à entrevista;
de falsas crônicas a memórias falsas. Conto com nota de rodapé? Relaxa, leitor/a:
faz parte da tática narrativa. Do caldeirão resultante sobressai-se um humor
ácido, que, se inibe a gargalhada, deixa um travo amargo na boca. Os quatro
últimos textos, entretanto, enformam uma memória da pandemia – e podem causar
um indesejável nó na garganta.
Acostumado aos embates das
análises críticas, o professor Zemaria Pinto fica muito à vontade no papel de
contista, enfeixando em um volume de desafiadora e prazerosa leitura textos que
poderiam ilustrar suas aulas de Teoria da Literatura ou seus livros de ensaios.
Evoé!
Clara Nihil, poeta e matemática,
na “orelha” do livro.