(Os doentes - continuação)
VI
À álgida agulha, agora, alva, a
saraiva
Caindo, análoga era... Um cão agora
Punha a atra língua hidrófoba de fora
Em contrações miológicas de raiva.
Mas, para além, entre oscilantes
chamas,
Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
Se
extenuavam nas camas.
Uma, ignóbil, derreada de cansaço,
Quase que escangalhada pelo vício,
Cheirava com prazer no sacrifício
A lepra má que lhe roía o braço!
E ensanguentava os dedos da mão nívea
Com o sentimento gasto e a emoção
pobre,
Nessa alegria bárbara que cobre
Os saracoteamentos da lascívia...
De certo, a perversão de que era
presa
O sensorium daquela prostituta
Vinha da adaptação quase absoluta
À ambiência microbiana da baixeza!
Entanto, virgem fostes, e, quando o
éreis,
Não tínheis ainda essa erupção
cutânea,
Nem tínheis, vítima última da
insânia,
Duas mamárias glândulas estéreis!
Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violência, no horizonte,
O sol malvado que secou a fonte
De vossa castidade agora finda!
Talvez tivésseis fome, e as mãos,
embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à-toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
E estais velha! – De vós o mundo é
farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da
derrota
Frequentam diariamente vosso quarto!
Prometem-vos (quem sabe?!) entre os
ciprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces,
O noivado que em vida não tivestes!
VII
Quase todos os lutos conjugados,
Como uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de óleo
Na arquitetura arcaica dos sobrados.
Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha ilusão de moço,
Como a boca de um poço artesiano!
Atabalhoadamente pelos becos,
Eu pensava nas coisas que perecem,
Desde as musculaturas que apodrecem
À ruína vegetal dos lírios secos.
Cismava no propósito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da igreja
E vai depois levá-lo ao cemitério!
E esfregando as mãos magras, eu,
inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciência terrível desse inseto!
Regougando, porém, argots e
aljâmias,
Como quem nada encontra que o
perturbe,
A energúmena grei dos ébrios da urbe
Festejava seu sábado de infâmias.
A estática fatal das paixões cegas,
Rugindo fundamente nos neurônios,
Puxava aquele povo de demônios
Para a promiscuidade das adegas.
E a ébria turba que escaras sujas
masca,
À falta idiossincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da
tasca.
O ar ambiente cheirava a ácido
acético,
Mas, de repente, com o ar de quem
empesta,
Apareceu, escorraçando a festa,
A mandíbula inchada de um morfético!
Saliências polimórficas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspícuo
prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o
horrendo
Tamanho aberratório das orelhas.
O fácies do morfético assombrava!
– Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh’alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!
Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Já podre, que a morfeia miserável
Tornava às impressões táteis,
palpável,
Como se fosse um corpo organizado!
VIII
Em torno a mim, nesta hora, estriges
voam,
E o cemitério, em que eu entrei
adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard
que fede,
Pela degradação dos que o povoam.
Quanta gente, roubada à humana
coorte,
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;
E nua, após baixar ao caos budista,
Vem para aqui, nos braços de um
canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1$200 ao lojista!
Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabelos se arrepiaram.
Os evolucionismos benfeitores
Que por entre os cadáveres caminham,
Iguais a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer às
flores!
Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de
vermes,
Todos os animais que apodreciam!
É possível que o estômago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se
irrite)
A cevar o antropófago apetite,
Comendo carne humana, à meia-noite!
Com uma ilimitadíssima tristeza,
Na impaciência do estômago vazio,
Eu devorava aquele bolo frio
Feito das podridões da Natureza!
E hirto, a camisa suada, a alma aos
arrancos,
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;
Pisando, como quem salta, entre
fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns
archotes,
À sodomia indigna dos moscardos;
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a igualitária
regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!
Na evolução de minha dor grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indenização dos meus serviços,
O benefício de uma cova fresca.
Manhã. E eis-me a absorver a luz de
fora,
Como o íncola do polo ártico, às
vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.
Nunca mais as goteiras cairiam
Como propositais setas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que sofriam!
Do meu cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a luz restituir o antigo
crédito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possui um sol dentro de casa.
Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol
claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!
IX
O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!
O gênio procriador da espécie eterna
Que me fizera, em vez de hiena ou
lagarta,
Uma sobrevivência de Sidarta,
Dentro da filogênese moderna;
E arrancara milhares de existências
Do ovário ignóbil de uma fauna
imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.
Um céu calamitoso de vingança
Desagregava, déspota e sem normas,
O adesionismo biôntico das formas
Multiplicadas pela lei da herança!
A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no
centro,
Para alcançar depois a periféria!
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu
ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios
tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
A doença era geral, tudo a
extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não
morre
Cansara... O ar que, em colônias
fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!
Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de
espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa
furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie
Humana!