Amigos do Fingidor

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Desfazendo um equívoco – aliás, quatro
Zemaria Pinto

Instantes não é de Jorge Luis Borges, como Marionete não é de Gabriel Garcia Márquez. Tampouco aquele “poema” idiota, que se lê de cima para baixo e vice-versa, não é da Clarice Lispector. Mas antes, muito antes da Internet, um autor brasileiro virou celebridade, permanecendo anônimo. Ele escreveu este poema:

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

O poema correu mundo, atribuído a ninguém menos que Vladimir Maiakóvski. No máximo, diziam que Eduardo Alves da Costa o traduzira para o português. Brecht também é apontado, eventualmente, como autor do poema. O mais curioso é que agora circula pela Internet uma apresentação que mostra a seguinte cadeia: Maiakóvski é o autor original, que inspirou Brecht, num poema parecido, que inspirou um certo Martin Niemöller, que inspirou um tal de Cláudio Humberto – o assecla do Collor?

O certo: assim como Instantes não é de Borges, Marionete não é de Garcia Márquez e aquela "coisa" não é de Clarice, o poema No caminho, com Maiakovski é do cidadão brasileiro, nascido em Niterói, em 1936, chamado Eduardo Alves da Costa. O poema que correu mundo atribuído a outros é, na verdade, um fragmento de um poema mais extenso (publicado hoje nO Fingidor - confira: http://ofingidor2008.blogspot.com/2009/01/no-caminho-com-maiakvski.html), lá dos anos 70, anos de chumbo.


Eduardo Alves da Costa.

A história: Martin Niemöller (1892-1984), pastor luterano alemão, nas suas prédicas antinazistas, fazia variações em torno de um mesmo tema:

Quando os nazistas levaram os comunistas, eu me calei; eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu me calei; eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei; eu não era sindicalista.
Quando eles levaram os judeus, eu não protestei; eu não era judeu.
Quando eles me levaram, não havia mais ninguém que protestasse.

Às vezes, ele usava negros em vez de comunistas, ou palestinos em vez de judeus. Dependia da platéia. O pastor jamais pretendeu escrever um “poema”. Se Eduardo Alves da Costa não lera Niemöller, então foi mera coincidência a possível semelhança que se observa. Se lera, trata-se de um singelo caso de intertextualidade.

Não tenho aqui o “poema” de duas cabeças que imputam a Clarice Lispector, mas, só para relembrar, Instantes, atribuído a Borges, é aquela bobagem que começa assim:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas pessoas levaria a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria em mais montanhas, nadaria em mais rios.


Se alguém lembrou de uma musiqueta do Nando Reis... Pois é, parece que o ex-titã também foi enganado ou, esperto, pegou carona. A autora foi identificada: chama-se Nadine Stair. Parece que tudo começou como uma brincadeira, que foi crescendo, crescendo...

Marionete, atribuído a GGM é aquele:

Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo, e me presenteasse um pedaço de vida,
possivelmente não diria tudo o que penso, mas definitivamente pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas, não pelo que valem, senão pelo que significam.
Dormiria pouco e sonharia mais, pois agora entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz.

Calma, leitor, controle suas entranhas. O autor desse permanece no anonimato. Espera-se que para sempre.