Amigos do Fingidor

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Sobre Estatutos do Homem

No dia 9 de abril de 1964, a Junta Militar que tomara o país de assalto dez dias antes decreta o Ato Institucional Nº 1, cassando direitos políticos e enxovalhando a frágil democracia brasileira. No Chile, onde servia como adido cultural, o poeta Thiago de Mello escreve um poema-desabafo, ironicamente subintitulado Ato Institucional Permanente. Ali nascia, de modo circunstancial, fruto da indignação e da revolta, o poema mais celebrado do autor: Os Estatutos do Homem*.

A publicação do poema, dias depois, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, custou-lhe inúmeros dissabores, entre os quais o rompimento temporário de uma velha amizade com o poeta Manuel Bandeira, simpatizante do novo regime. Mas trouxe-lhe também, com o tempo, a alegria do reconhecimento daqueles que, sem voz, usaram a palavra encantada do poeta para expressar sua esperança.

Em livro, Os Estatutos do Homem aparece pela primeira vez em Faz Escuro Mas Eu Canto, de 1966, no qual o poeta declara, no poema “A Vida Verdadeira”: “Não, não tenho caminho novo. / O que tenho de novo / é o jeito de caminhar.” Era uma nova forma de cantar: a poesia de Thiago de Mello – até então, entre introspectiva e metafísica – assumia uma postura radicalmente oposta, de forte conotação social, que ele mesmo classificaria como poesia comprometida.

Os Estatutos do Homem é uma celebração da utopia. Suas imagens são claras e traduzem claridade. Verdade, vida, manhãs de domingo, girassóis, palmeira, vento, azul do céu, são palavras colhidas logo nos primeiros Artigos, às quais outras igualmente positivas vêm se juntar, compondo um todo harmônico, que, discursivo na aparência, envereda pela poesia mais lúdica, engendrada no cerne da linguagem, como no Artigo XII, que antecipa em quatro anos o “é proibido proibir” dos jovens revolucionários do maio de 68: “Tudo será permitido, / inclusive brincar com os rinocerontes / e caminhar pelas tardes / com uma imensa begônia na lapela.”

Mas, e agora, leitor? Quase 40 anos passados, qual o sentido de Os Estatutos do Homem? As circunstâncias históricas são outras, é verdade, mas a essência do nosso cotidiano, lamentavelmente, continua o mesmo. Já não existem mais os Atos Institucionais, as prisões arbitrárias, os interrogatórios ilegais, a censura, a tortura, os assassinatos... Mas o Homem continua oprimido, vitimado pelo desemprego, pela fome, por um sistema de saúde ineficiente, por uma previdência falida; sem teto, sem terra, sem acesso a uma educação de qualidade, submisso a uma cultura industrializada e alienante; exposto à violência do crime organizado e à barbárie do aparelho policial. Numa palavra: sem liberdade.

Por isso este poema se mantém íntegro e atual: porque você, leitor/leitora, tem a sua parcela de contribuição na lenta construção de um mundo fraterno e justo. Poemas não mudam o mundo, mas podem mudar pessoas: se ter a liberdade como “algo vivo e transparente” no “reinado permanente da justiça e da claridade” é um sonho, somente compartilhando esse sonho – e aliando-o à ação concreta – poderemos torná-lo realidade.
*Assim era grafado nas primeiras edições. Depois, suprimiu-se o artigo.
(Zemaria Pinto, na orelha da terceira edição trilíngüe de Estatutos do Homem – Manaus: Valer, 2001.
Tradução do poema para o espanhol: Pablo Neruda; para o inglês: Robert Márquez e Trudy Pax.)