Amigos do Fingidor

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A miragem elaborada – 4

Zemaria Pinto

O homem ocupa o espaço


III



Mas como é difícil para esse Homem o retemperar-se: a leitura atenta do poema Amazônica mostra-nos a saga de um caboclo típico:

                    sem novidade
                    nasceu José
                    no tapiri.

Um bordado circular, em curtos versos de quatro sílabas – onde o antagonismo círculo X quadrado revela-se na formação daquele pela superposição infinita deste –, Amazônica é um tenso e cruel relato do cotidiano da região, ao longo de toda uma vida:

                     filho casado
                    morando ao lado
                    cheio de filhos
                    no mesmo estado
                    recomeçando.

A circularidade colocada de forma tão incisiva leva-nos a imaginar espelhos refletindo-se mutuamente, multiplicando uma única imagem ao infinito:

                    José espera
                    na beira dágua
                    no tapiri.
                    Como seus pais.

Como seu filho e os filhos de seu filho esperarão:

                    e a mãe-do-rio
                    de vez em quando
                    trazendo a enchente
                    que leva tudo.

“A vida é provavelmente redonda”, escrevera Van Gogh. Bachelard, ao citá-lo em A poética do espaço, inicia uma inebriante viagem rumo à certeza de que “o mundo é redondo em torno do ser redondo”. Para o
homem amazonense, sob a ótica de Alcides Werk, a vida é certamente redonda. José está velho, aposentado

                    doou seu sangue
                    para o futuro.

E o futuro era a estrada Transamazônica, sonho de redenção de tão curta existência que não passou mesmo de sonho, subproduto do “milagre brasileiro”, acalentado pela ditadura. José sonha que a estrada virá

                    com muita gente
                    nos caminhões
                    nos aviões
                    para rendê-lo
                    no antigo posto
                    que recebeu
                    dos ancestrais.

O posto de trabalhador que

                    cortou pau-rosa
                     juntou castanha
                    sangrou seringa
                    de sol a sol.

                    plantou mandioca
                    tratou da juta
                    todo molhado
                    por muitos anos.

                   Mas nada soube
                   de agricultura.

A monocultura extrativista, de caráter historicamente cíclico, do pau-rosa, da castanha, da borracha, da mandioca e da juta, tem mantido a economia amazonense no elo extremo da corrente de progresso que o país experimenta. Piscicultura é uma palavra que nunca fez parte da fala regional. Da mesma forma, as técnicas de agricultura e pecuária foram sempre mantidas distantes do caboclo, que nunca passou de mão de obra desqualificada, a serviço de coronéis que, sediados em Manaus, sonham com Paris. Ao homem resta crer que seu sofrimento é da “vontade de Deus”. Nesse sentido, a Zona Franca é um atalho para o paraíso.