Amigos do Fingidor

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A fragmentação das torres – 2

Marco Adolfs

Ricardinho pensa em sua vida


“Vovó tem o olhar perdidinho no Cristo...Todo o dia é a mesma coisa...Deve ser essa coisa de Ozaimer?...”

Elza havia saído aí eu fechei a porta e disse para o cachorro subir na cama. Liguei a televisão. Passava o Jornal Nacional. Torres gêmeas em Nova Iorque se espatifando no chão. Parecia um filme, mas não era. Era o dia 11 de setembro e amanhã eu teria uma prova. Fumaça. Foi muito feio ver aquele homem se lançando no espaço e morrendo. Pitomba nem estava aí para aquilo. Pensava em suas pulgas e o mundo que se lixasse. Eu tinha que estudar para a prova. E também, pensando bem, não estava nem aí para isso. Saí do quarto e fui direto para a geladeira. Tirei de lá uma caixa de leite e bebi um copo. Eles estavam lá no quarto; também vendo televisão. Com certeza tinham visto aquelas torres caindo depois daquilo. Isso seria motivo para conversas e aulas. O professor Chaves com certeza iria falar de tudo aquilo com aquela sua cara de idiota e achando que sabia de tudo.

Culpa dos americanos existirem! Era a terceira Guerra Mundial começando! O mundo ocidental exigiria isso. Aula de História. Voltei para o quarto e o Pitomba estava lá olhando, olhando e olhando, aquelas torres caírem. Deu um latido e me olhou com seus olhos de cachorro. Fiz umas colas e resolvi dormir. E as torres continuavam a cair em todos os canais de jornalismo. Eram terroristas, fui levado a crer. O mundo estava assim quando me deitei. Logo me veio ao pensamento o silêncio da noite e as estrelas explodindo brilhando no ar. Elza era muito chata como gata. Que ronronasse pelos telhados em busca de ratos e machos. Pitomba e eu não estávamos nem aí.

Pitomba latia; papai abria a porta do quarto da vovó para ver se estava tudo bem e mamãe tirava um cochilo. Amanhã iria para o seu consultório para abrir a boca dos seus pacientes. Elza apareceu toda molhada e fugiu culpada por entre as minhas pernas. Os jornais só falavam naquilo. Papai até comentou. Claro que eu vi. Todo mundo viu. E ainda via. Os EUA retaliariam. Mas eu não estava nem aí para a porra das torres nem para a porra da prova. O Bush circulava pela boca de papai e chovia lá fora. E o mundo era uma fumaça só, pensei. Bush vai atacar! Pitomba devia estar dormindo todo enrolado e Elza se lambia culpada, embaixo da pia. Os dois animais se respeitavam mais do que essas pessoas. Os terroristas haviam derrubado duas torres dentro dos EUA. Que coisa aquele homem caindo no vazio do espaço. E as imagens eram repetidas, repetidas e repetidas. Acho que Pitomba começou a entender tudo e se escondeu embaixo da cama. Ele costuma fazer isso quando vê alguma coisa ruim na televisão

A prova não deveria ser lá muito difícil. Mas antes, todos comentariam sobre o acontecido. Eu procuraria os olhos de Carminha, a minha melhor amiga e colega. O professor Chaves nos olharia e pareceria querer nos comer com os olhos, enquanto distribuía as provas pedindo silêncio. Mas ele não fazia nenhum silêncio tagarelando sobre o acontecido. No escritório e no consultório, Jorge e Miriam, meus pais, também falariam sobre o acontecido. Ele com aqueles papéis de advogados; ela com aqueles dentes de desdentados. Falariam com os clientes sobre o acontecido com os EUA.