Amigos do Fingidor

domingo, 10 de outubro de 2010

Uma visão colonizada do índio

Jorge Bandeira*


A um historiador e humanista cabe a tarefa, neste século XXI, de desmistificar conceitos enraizados ao longo do processo histórico. E reinserir uma visão menos romântica e precipitada sobre aspectos étnicos e antropológicos sobre uma determinada temática. Minha escolha recai, naturalmente, aos condicionantes impostos à civilização indígena, seja a localizada na Planície Amazônica ou em outras partes de nosso Brasil. Estudos de longa data já foram feitos para alertar sobre um retorno desnecessário ao conceito de BOM SELVAGEM, notadamente os difundidos por Jean-Jacques Rousseau no século das luzes, o século XVIII. Afonso Arinos de Mello Franco foi um dos pensadores que alertou para equívocos sérios que eram perpetrados no imaginário do povo, numa visão que considerou simplista para qualificar os índios como “herdeiros do paraíso”.

Este texto não visa minimizar os terríveis fatos do choque de culturas, responsável direto pelo aniquilamento de diversas tribos indígenas no decorrer do processo “civilizatório” oriundo da colonização de nosso território. O grande pensador das culturas demonstra que esse ideário romântico foi forjado após o triunfo da Revolução Francesa de 1789, salientando que a base do pensamento revolucionário francês foi erguido graças à divulgação de ideias iluministas, das quais Rousseau foi um dos grandes expoentes.

A visão do “bom selvagem de Rousseau” pode ser definida como “sociedades perfeitas que possuíam um vínculo total com a natureza, pacíficas e dotadas de governos que não funcionavam com os rigores da autoridade citadina”. Arinos lembra que desde os mais antigos registros as civilizações indígenas foram sempre vinculadas a processos de conquista de territórios, saques, mortes, sequestros, violências e outras ações que as afastam de uma visão de pacifismo. As tribos indígenas foram surgindo como um processo não natural, mais de guerras e embates. Até hoje temos estes resquícios, quiçá a visão romântica de estudiosos que buscam no índio uma espécie de Adão perdido no vácuo civilizatório.

Em relação ao contato pós-conquista, é claro, os índios foram os perdedores, as vítimas de toda uma crueldade dos europeus que não se preocuparam em nenhum momento em ter os índios como parceiros no avanço cultural e social, impondo uma cultura a fórceps, e nisso resultou o extermínio de tribos em números alarmantes. E aqui entra a noção e conceito de NATURISMO, que não deve ser enquadrado automaticamente como uma condição da civilização indígena, pelo menos a partir dos estudos de etno-história pioneiros, realizados no final do século XX. Ora, o índio, primeiramente, é um ser humano, condicionado pela situação social, ou então voltamos ao século XVIII e consideramos o índio uma entidade abstrata, transcendental, com nenhum vínculo com a natureza, essa sim, transformadora, e que se mantém por uma condição infinita de construção e destruição.

Nesta visão científica não há lugar para este índio Bom Selvagem, pois ele é fruto destes anseios de conquista, de usurpação, que está perfeitamente inserido no processo civilizatório. A pureza é um mito, já alertava o poeta Torquato Neto. Por isso a figura do índio é facilmente colocada como um estereótipo fácil, levada como propaganda panfletária, o que torna o índio cada vez mais ridicularizado, passivo. Não creio ser esta atitude uma contribuição para os índios que restaram, pois a base de criticidade de tal atitude, notadamente as mais exacerbadas, não dignifica o passado desses povos.

Um índio não é, necessariamente, um NATURISTA, nos termos em que entendemos hoje o Naturismo. A relutância com a nudez está presente em todas as civilizações, inclusive a indígena. Infelizmente, esta visão simplória do índio nu e em perfeita harmonia com os seus e com a natureza tem esmagado e reduzido às cinzas a capacidade de atuação dos que entendem que este índio utópico deve ser erguido ao patamar dos estudos pioneiros dos etno-historiadores, que quebram a visão maniqueísta de todas as civilizações e sociedades, e fazendo, desta forma, que as acomodações ideológicas das doutrinas do Ocidente cristão, sejam postas à prova, estabelecendo um novo pensar sobre os índios. Se nosso índio hoje está relutante em ficar NU, a culpa cabe a esta estrutura colonial que foi vitoriosa, com os auspícios do Cristianismo.

O tempo não volta atrás. Cabe ao Naturista pensar em estratégias de inserir seu discurso a um povo que já deixou de ser, há muito tempo, aquele bom selvagem de antes da Revolução Francesa. Se é que esse índio um dia existiu, verdadeiramente.

*Naturista, um dos fundadores do Graúna, Grupo Amazônico União Naturista.
Vice-presidente da FBrN. Historiador e especialista em História social da Amazônia(UFAM) e Africanidades(UNB).