Amigos do Fingidor

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A miragem elaborada – 5

Zemaria Pinto


O homem ocupa o espaço

IV


 
No livro Da noite do rio, Alcides Werk registra, num poema intitulado “Transamazônica”, sua ilusão temporária:

                    Largo caminho avançado,
                    avançando.
                    Pontes.
                    Ramais aproximando cidades.
                    Lavouras,
                    pecuária,
                    minérios,
                    riquezas incontáveis,
                    escolas,
                    hospitais,
                    indústrias,
                    trabalho e pão para todos.

O poema foi sumariamente retirado das 1ª e 2ª edições de Trilha Dágua, reaparecendo na 3ª edição com o título “Do tempo entre duas águas”, mantendo apenas, praticamente inalterados, os 15 primeiros versos, para então mergulhar em profundo delírio, trocando o prosaísmo que caracterizava a versão anterior por um lirismo amargo e cortante.

A água, o rio, a enchente; a terra, a floresta, a várzea; o homem, a cidade, o mito. Como se relatasse uma visão onírica, o poeta nos conta da enchente e seus transtornos, mas sem deixar de vislumbrar no fenômeno a força telúrica de uma transformação a ocorrer no próprio homem.

Logo nos primeiros versos, a partir de um dado suprarreal – a mãe-do-rio, “ente responsável pelos fenômenos do rio e pelo destino dos seres que o habitam”, segundo o próprio autor –, aquele fenômeno é descrito de forma concisa e voluptuosa:

                    A mãe-do-rio virá com suas águas poderosas
                    e inundará a várzea,
                    e cobrirá os jutais e os tapiris,
                    e invadirá os domínios da mata.

Note-se que a mãe-do-rio é, também, para o ribeirinho, do ponto de vista geofísico, a calha principal do rio.

A desilusão do caboclo frente ao acontecimento cíclico reafirma a desilusão com a atividade extrativista, primária:

                    Minha gente conhecerá, ainda uma vez,
                    o espanto da enchente
                    e a ilusão dos jutais e das lamas humosas

Mas as águas poderosas, fortes, destruidoras, trazem também, em seu bojo, a fertilidade. No acasalamento com a terra da várzea, a água se masculiniza, e a vida se reinventa, se refazendo:

                    Os peixes se multiplicarão nos igapós,
                    e o rio doará à várzea a fertilidade das águas.

Mas é a partir de uma ideia milenar – o começar uma nova vida após a destruição/purificação pelas águas – que o poeta atinge o máximo de sua expressão:

                    e se refugiará nas marombas
                    com seus animais
                    e as sementes de novas esperanças

Estas sementes não são apenas a esperança no amanhã, na aurora, no novo dia, mas sim, e principalmente, a esperança em que o próprio homem – cada homem, ilhado em sua arca/maromba – reflita sobre a necessidade de mudar-se. É sobre essa ideia que se desenvolve a segunda parte do poema, quando o poeta vaticina a desobstrução dos “canais dos nossos sonhos” (dentro da ambiência amazônica do poema, alusão longínqua, também, à obstrução dos canais, furos e braços de rios, nas enchentes, com matupás e canaranas, impedindo a navegação dos pequenos barcos dos ribeirinhos) por uma “força benéfica”, trazida no rebojo das águas poderosas. Aqui, a realidade é invertida numa visão utópica pela atividade daquela força benéfica:

• Ao contrário do que vemos no espaço da capital amazonense – a “urbe com suas indústrias e seu comércio”, capital da Zona Franca e da maior taxa de crescimento demográfico do país, consequentemente, capital da miséria –, o caboclo ao migrar para cá sonha em não viver num

                    amontoado de seres revoltados

• Renegando, definitivamente, a estrada miraculosa que engendrara a primeira versão do poema, o autor vê em sua utopia, “caminhos da várzea” e “caminhos da terra firme”, construídos pelo bom senso do homem, onde o seu trabalho não será mais consumido pelas águas. E as “florestas indomadas”, inacessíveis, serão apaziguadas e o subsolo terá seu “segredo milenar” desvelado – longe dos delírios megalômanos dos
governantes

                    sem enveredarmos por transamazônicas impossíveis

• O “espírito da cidade” e o “senhor da mata”, regozijados com o encontro do homem consigo mesmo, serão seu guia lá ou cá, enquanto a mãe-do-rio continuará sua faina fértil

                    e apascentará os cardumes
                    que alimentarão nossos filhos.

Essa mudança de valor na ideia de grandeza (águas destruidoras, negativo/água férteis, positivo) ilustra bem a observação de José Veríssimo, no seu Estudos Amazônicos, de que o caboclo conserva dos tupi-guaranis “a crença geral de que tudo tem uma mãe, o ci do servagem”. Assim, Werk antepõe à mãe-do-rio e ao senhor da mata, entes conhecidos do caboclo, o espírito da cidade, atuando na urbe com a mesma função daqueles: presidir seus fenômenos e o destino de seus habitantes.

Finalmente, completando a espiral que encerra o poema, o autor –por força da ação daqueles entes poderosos – une, no espaço da composição – o rio, a floresta, a cidade –, o sonho do “paraíso amazônico”, tão caro a uma poesia já perdida no tempo. No caso de Werk, entretanto, esse recurso não é mera retórica, posto que o perpetuar

                                                   o gesto simples
                    do amanho e da partilha justa

é consequência de uma mudança que não é produto de milagre, mas sim de uma mutação de comportamento e atitudes que ensejarão ainda muitas e muitas idas às marombas.