Amigos do Fingidor

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 4/14

Zemaria Pinto

c) Foco narrativo


Uma das análises mais interessantes a serem feitas em uma narrativa é descobrir qual o papel desempenhado pelo narrador, qual o “foco” da narrativa, qual a percepção, o ângulo de visão de quem narra. O narrador de Mar morto, que não deve, em hipótese alguma, ser confundido com o autor, se nos apresenta a um só tempo original, dada a sua dificuldade de ser caracterizado, e velho conhecido, quando descobrimos que a técnica usada é tão velha quanto o velho hábito de contar histórias. O leitor pode observar que logo após a dedicatória, que é um atributo do autor, o narrador fala diretamente conosco:

... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia.(...) Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo(...)
Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor no mar. E se ela não vos parecer bela a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a ouvistes da boca de um homem da terra, e dificilmente um homem da terra entende o coração dos marinheiros.

Você percebeu, leitor, que o narrador coloca-se numa posição de personagem, falando em primeira pessoa, identificando-se como “homem da terra”, mas, ao término da leitura da obra, percebemos que a narração se deu, sempre, em terceira pessoa. Ou seja, o narrador não participa da história que conta, está a alheio a ela. Quando isso acontece, os manuais nos ensinam, dizemos que o narrador é onisciente. Mas será mesmo onisciente o narrador de Mar morto?

Se você já leu o livro todo (e para ler estes comentários é preferível que sim), deve lembrar-se do personagem Leôncio, irmão de Francisco e tio de Guma, que aparece rapidamente, numa atmosfera sombria, no capítulo “Eram Cinco Meninos”. Leôncio parece portar um estigma, mas qual? Se o narrador fosse onisciente, não haveria porque sonegar essa informação ao leitor. Em assim o fazendo, passa-nos a impressão de algo incompleto, mal resolvido, um personagem sem função na trama.

Em contraposição a este, há o episódio da morte de Rufino e Esmeralda, no capítulo “Água Mansa”. Como não há testemunhas, o narrador, se não aceitarmos sua onisciência, teria “inventado” tudo, o que não deixaria de ser uma forma de onisciência...

Lembremos ainda o delírio do canoeiro Traíra, em seu leito de morte:

Rodrigo examinou a ferida, o doente não ouvia mais nada, não se apercebia da presença deles. Só via as três filhas dançando em torno, saltando risonhas, rindo alacremente. Marta, Margarida, Raquel. É uma boneca nova que Raquel tem nos braços, uma boneca nova que conversa com ela, boneca que ele trouxe nessa viagem. Ele vai embora num navio, ele vai embora numa nuvem e Marta e Margarida e Raquel dançam no cais, dançam as três de mãos dadas como nos dias felizes em que Traíra chegava das longas viagens e deitava na mesa os presentes trazidos. Marta veste as peças mais novas do enxoval, Margarida dança sobre pedras que catou na beira do rio, Raquel aperta uma boneca ao peito.

(“Marta, Margarida, Raquel”)

Neste caso podemos aceitar uma onisciência “relativa”, uma “licença poética” do narrador, que, dominado pela emoção, busca pintar com tintas líricas o momento cinza e inexpressivo da morte.

Muitos outros episódios poderiam ser mostrados, nos quais o narrador conta o que ouviu de alguém, exatamente como fora prometido na abertura. Essa maneira de contar, tipo história-puxa-história, retrata bem a oralidade da qual o povo se serve para transmitir suas tradições. Guma e Lívia jamais existiram, mas até a forma de contar sua história empresta-lhes verossimilhança, isto é, faz-nos parecer que eles foram reais, construídos por um “narrador testemunha”, que narra o que “viu, ouviu ou leu em algum lugar”, mas cuja visão é limitada se comparado ao narrador onisciente.

É narrador testemunha, pois, o personagem que nos conta a vida de Guma: sua visão é limitada pelas informações recebidas, porém, como todo bom contador de histórias, ele preenche os vazios não com a verdade tal e qual porque não a conhece, mas com a “verdade possível”, tirada de sua fértil imaginação.

Ilustrações: capa da 4a. edição portuguesa - note o apelo à telenovela Porto dos Milagres, de 2001; capa da edição islandesa de 1957.