Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Os Sonetos Reunidos de Alencar e Silva, uma simples apresentação

Jorge Tufic*


Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.

Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista de Anísio Mello, “Amazonas Ilustrado”, de 1952, ano que marca sua estréia na poesia, com o livro Painéis. Em 1951 participou de uma caravana de poetas que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos “caravaneiros”, também chamados de “monges”, se inscrevem nos antecedentes do movimento madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu nome: a “geração madrugada”.

Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante, completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre, também poeta e dos bons, “ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa, porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação.” (Território Noturno, Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de Noturno Após o Mar, livro de crônicas e poemas em prosa, “Alencar e Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram, e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das sombras, a hora da alegria.”

Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin, Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 50, Global Editora, SP, 2007, sob a direção de Edla van Steen –, parte de uma série que trata das raízes até o ano 2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos processos criativos de nossa literatura. “Os anos 50 foram dos períodos mais férteis da poesia brasileira do século XX.” Tempo de grandes aventuras formais, suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da “poesia de muro”, apoiada pelo Clube da Madrugada, e outras correntes estéticas que fizeram história.

Poesia Reunida é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e cronista L. Ruas, de saudosa memória: “Gostaríamos apenas de dizer que Alencar e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo, o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética”. E Elson Farias, no prefácio à primeira edição de Lunamarga, não deixa por menos: “O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira: profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.” A fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de Paula, Anísio Mello...

Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem, contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos ou linguísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à publicação de obras importantes da literatura amazônica.

Assis Brasil, no volume “A Poesia Amazonense no Século XX”, relembra que Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e “o equilíbrio clássico” da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em “dicção despojada e serena”. Enfim, “amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua portuguesa”. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da descoberta: “Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, “A Tarde”, de Aristóphano Antony, e “A Crítica”, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi feito em “O Jornal”, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento e no “Jornal-Cultura”, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e editor”. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal, cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico.

Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti o autor que melhor estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo que, pela extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua obra poética. Deste modo, esclarece: “Pude agora ultimar a análise, sem caráter definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois o livro Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações e confrontos textuais”. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um neomisticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.

Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários, memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia: Painéis, poesia, 1952; Lunamarga, poesia, 1965; Território Noturno, poesia, 1982; Sob Vésper, poesia, 1986; Poesia Reunida, 1987; Noturno Após o Mar (crônicas e poemas em prosa), 1988; Sob o Sol de Deus, poesia, 1992; Ouro, Incenso e Mirra (poema em cinco segmentos e cinquenta sonetos), l994; Solo do Outono, poesia, 2000; Jorge Tufic: As Tendas do Caminho, ensaio, 2004; Crepuscularium, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos: Prosa Vária, ensaios, e Poetas e Figuras na Paisagem, ensaios. Entretanto, como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à sede da Prudência e Capitalização, na tentativa de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente da empresa seguradora, quem nos sugeriu a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um soneto. Sem demora, Alencar e Silva tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranquilidade, os quatorze versos solicitados, e, assim, com este “passaporte”, oficializamos palestras e contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.

A obra de que estamos nos ocupando reúne todos ou quase todos os sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns avulsos, sem falar nos improvisos e nas circunstâncias poéticas ou de foro íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo, nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do neossimbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva, quando retarda ou deixa ao leitor a fruição da beleza e da verdade. “Quero enxuto o meu verso e muito simples”, em O Soneto no Amazonas (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de Lunamarga como exemplo de “linhas calmas e transparentes, despojado de lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de inovação, por certos autores da corrente futurista.”

Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta, representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no afeto e na convivência humana, de que nunca, jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer.

(*) Apresentação do livro Sonetos Reunidos, de Alencar e Silva, a sair.