Amigos do Fingidor

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Mar morto, de Jorge Amado, uma análise 6/14

Zemaria Pinto


O capítulo “Terras do Sem Fim” é o mais longo de todo o livro. Nele se resume a história de Guma, do nascimento até os 20 anos. O leitor deve observar o movimento de vai e vem da narrativa, o que justifica o uso da expressão história-puxa-história. De início, somos apresentados ao velho Francisco, tio de Guma, que o criara, na ausência do pai, morto num naufrágio:

Hoje vive de remendar velas e do que lhe dá Guma, seu sobrinho. Tempo houve, porém, em que teve três saveiros que os ventos da tempestade levaram. Não puderam foi com o velho Francisco. Sempre voltou para o seu porto e os nomes dos seus três saveiros estão tatuados no seu braço direito junto com o nome de seu irmão que ficou numa tempestade também.

O narrador parece guiado unicamente pelas lembranças de Francisco: sua mulher que morreu “do coração”, na mesma noite em que morrera Frederico, o pai de Guma; o encontro com a mãe de Guma, quando este já ia pelos 11 anos de idade. Na sequência, narra-se o encontro de Guma com a mãe, sob a perspectiva do protagonista, num anticlímax interessante, pois o menino imagina que, aos 11 anos, aquela mulher estranha seria sua iniciação sexual. A decepção é seguida do ciúme que ele sente do tio (não pela mãe, mas pela mulher...). O menino sente, pela primeira vez, o desejo de morrer, de viajar com Janaína para as Terras do Sem Fim. Depois daquele encontro fortuito, a mãe desaparece de novo, mas ele continua a vê-la em cada mulher que sua libido de criança deseja.

O ritmo da narrativa é ligeiro, como um saveiro com o vento a favor. O fragmento seguinte conta a iniciação sexual de Guma, aos 13 anos:

Ele era homem, dobrava uma mulher aos seus pés. Agora já podia sair com o “Valente” pelos portos todos, sozinho como um verdadeiro mestre de saveiro. Voltou em meio do temporal que desabou. A mulata se acolheu no seu peito com medo. Ele sorriu pensando que Iemanjá estaria com ciúmes e descarregava contra ele os ventos e os raios.

Ainda neste fragmento – passaram-se outros anos, passaram outras mulheres –, Guma assume em definitivo o manejo do saveiro “Valente”, aos 18 anos. Um fragmento para falar da melancolia de não conhecer o além-horizonte, representado na figura recorrente de Chico Tristeza, e voltamos novamente no tempo para conhecer um pouco mais da infância atribulada de Guma: sua passagem pela escola de Dona Dulce, por 6 meses (!), aos onze anos, tempo suficiente para aprender a “ler e a escrever o nome”. Novamente é marcada a inevitabilidade do destino:

Poderia ter entrado na Politécnica, seria um grande engenheiro e talvez inventasse uma máquina que melhorasse o destino dos marinheiros no mar instável. Mas, os meninos do cais não vão às faculdades. Vão para os saveiros e para as canoas.

Mas a lembrança mais remota era a de uma porta se abrindo em noite de tempestade e um homem que entrava “numa capa de oleado, escorrendo chuva”. Era o seu pai, Frederico, que retornava de viagem, para pouco tempo depois morrer afogado em outra noite de tempestade.

O último fragmento relembra casos e amigos de infância e adolescência: Rufino, Jacques, Rodolfo, Maneca Mãozinha.

Procuramos resumir o movimento de apresentação do enredo no capítulo “Terras do Sem Fim”, para que o leitor perceba o engenho do ficcionista: as informações nos são passadas em parcelas, em aparente desordem. Observe quantas vezes, neste capítulo, os pais de Guma são citados rapidamente: Frederico, viajante de terras distantes, ausente; a mãe, inominada, presença fugaz e frustrante. O mesmo se dá com a figura mítica de Iemanjá/Janaína, presença recorrente em todo o capítulo.

O narrador deixa que a história flua como numa conversa à beira do cais, ao sabor das ondas que vão e vêm, mas, ao final do capítulo, temos todas as informações sobre o jovem Guma e estamos, juntos com ele, preparados para as peripécias dos capítulos seguintes, onde se mostra a afirmação de Guma como um herói daquela gente. Seus feitos correm por todos os cais da Bahia e o narrador o entrevê, no capítulo “Viscondes, Condes, Marqueses e Besouro”, junto a heróis populares do povo baiano, como Zumbi, Besouro, Lucas da Feira e o temível Lampião, ainda vivo à época.

Esta primeira parte do livro nos mostra o herói em “construção”. Aqui conhecemos um Guma, valente, destemido, fiel aos seus e à lei do cais. Um Guma amante de muitas mulheres, mas apaixonado por Lívia, que, ele acredita, fora “presente” de Iemanjá. Não à toa, o último capítulo intitula-se “Marcha Nupcial”, no qual se percebe, entretanto, um tom fúnebre, anunciando o que viria a seguir.

A segunda parte de Mar morto, “O paquete voador”, tem nove capítulos e a mesma estrutura narrativa conversa-puxa-conversa da primeira parte, que procuramos demonstrar a partir do capítulo “Terras do Sem Fim”. Desta vez, entretanto, os capítulos seguem uma ordem cronológica rígida, exceção feita a “Toufick, o árabe”, onde, em flashback, o narrador conta a trajetória do personagem de terras árabes até a Bahia.

É interessante notar, entretanto, que, se a primeira parte mostrava o herói em “construção”, isto é, em trajetória ascendente, desde sua concepção, a partir do encontro entre um marinheiro e uma prostituta, o ponto zero, até os vários feitos heróicos que culminam, no ponto máximo, com a união a Lívia, esta segunda parte mostra o declínio do herói e seu fim trágico.

Guma, o herói, comete erros: trai seu melhor amigo, Rufino, trai a esposa, Lívia, e envolve-se com o contrabando em busca de dinheiro fácil. Seu final, heróico, é bem verdade, não o exime de culpa. Por isso, nesta parte, a narrativa toma um tom sombrio desde o início, que, na verdade, reata a história a partir do ponto em que se iniciara, nos capítulos “Tempestade” e “Cancioneiro do cais”, na primeira parte. A continuação destes é exatamente “Roteiro do mar grande”, a rota onde morreram Mestre Raimundo e Jacques. O capítulo “Eram cinco meninos” é especialmente sombrio, pela narrativa do acidente que resultaria no título, pelo aparecimento do misterioso tio Leôncio e especialmente pelo remorso que consome Guma.

Jorge Amado não é muito hábil em mostrar o que vai na alma de seus personagens, mas nos faz, com poucas palavras, perceber o sentimento de Guma, após a dupla traição:

Guma não fita a lua. Quebrou a lei do cais. Não é medo de Rufino que ele tem. Se não fosse seu amigo não se importaria. Tem é vergonha, vergonha dele e de Lívia. (...) Traíra a todos, traíra também seu filho por nascer, pois não lhe deixava uma tradição no cais. (...) Não. Era um traidor, fizera igual ao sujeito que apunhalou Besouro pelas costas. (...) Se não fosse um marinheiro, Guma choraria como uma criança, como uma mulher, como um preso de lúgubre prisão.

Como se observa, o herói está reduzido a nada.

O último capítulo da segunda parte, “Terras de Aiocá”, mostra-nos o último ato de heroísmo de Guma, ao salvar o contrabandista Toufick e Antônio, filho de F. Murad, o “chefão” do contrabando. Mostra-nos também a última viagem de Guma, para as Terras do Sem Fim, as terras da Princesa Aiocá.

“Mar morto”, a terceira parte, em quatro capítulos explica o título do romance, reabrindo, com o otimismo possível, a saga de Guma, a ser continuada por Lívia e Frederico, seu filho.

Ilustrações: capa da edição brasileira de 1965; capa da edição italiana de 1958.