Amigos do Fingidor

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

As noites e os dias

Jorge Tufic


Para quem lê contos, para quantos que ainda mantêm, à cabeceira, os livros fundamentais desse gênero da literatura, o que pode representar “Os Dias e as Noites”, do médico e ficcionista Ronaldo Correia de Brito? Pois logo vos digo que o livro deste autor representa o que de melhor já foi escrito, até hoje, pelos mais consagrados escritores brasileiros, quer hajam estes inovado a técnica do conto, quer tenham ficado na linha tradicional da narrativa curta, por absoluta necessidade de enfatizar os temas de  uma região tão forte como o Nordeste, ou tão desconhecida como a nossa Amazônia.
Não é fácil, portanto, explorar o regional, o poder da imagem, sem cair nas armadilhas do terrorismo psicológico, nas malhas comuns daqueles dramas que respeitam a todos os viventes do planeta, compondo, assim, um texto ausente de Eufrásia Menezes, ali onde “os homens são o sol abrasante, vistos de dia, ocultos de noite”. Todavia, em Ronaldo Correia de Brito não há propriamente regionalismo no sentido Blaus Nunes, símbolo da oralidade, alter ego do grande Simões Lopes Neto, tampouco se confunde com a narrativa grosseira de fatos pitorescos, históricos ou sociais referentes a este ou àquele lugar, fazenda ou vilarejo. Ele vai muito além disso, através da linguagem, começando seus contos como quem retoma o fio da meada, isto é, sem começo; o que dá, ao meio, as surpresas regentes do clímax  que urde as tragédias, desloca o fim para o começo ou fica para o leitor concluir pelo autor, como em certas peças de teatro, anteriores e contemporâneas do metateatro. Seu texto abriga o discurso poético isento da “transparência” assemelhada ao pingue-pongue das ruas, da fala corrente, a que se refere Assis Brasil em seu “Vocabulário Técnico de Literatura” (Edições de Ouro, 1979, pag.65). E vai mais longe: articula o diálogo das personagens sem o recurso barato da transcrição ipsis verbis, do apelo à gíria, mas dando a cada incidente o tom e a síntese medidos pela secura dos hábitos, regulados por muita ação e pouca conversa.

O “mastruço”, o “gibão”, a “rapadura”, as léguas percorridas e o eterno conflito entre Deus e o Diabo, com todo um denso repertório de chaves semânticas, a par de uma sintaxe amadurecida no clima das leituras seletivas dos clássicos do romance nordestino, são estes os elementos que fazem o seu estilo pessoal, coerente e despojado, oposto ao modo dos primeiros rapsodos, sempre atento aos mínimos objetos e detalhes que se incorporam à legenda, à matéria que faz deste livro um ser vivo, como quer Mário Hélio.
Numa visão moderna, os contos de “As Noites e os Dias” remontam ao século XIX, quando predomina, no Ocidente, o chamado “conto rústico”, o qual, embora voltado para uma tendência realista, conserva ainda um forte sentimento romântico e idealização da realidade. Isto quanto às influências do progresso (entre aspas) que esmaga e tenta sobrepujar as delícias da vida campestre ou rural. Inclina-se, neste mesmo raciocínio, para o lado dos “humilhados e ofendidos”. Valoriza, portanto, o rural, no caso da Europa, as aldeias, em contraste com os danos da civilização industrial e das cidades modernas, surto que nos daria as obras pioneiras de autores americanos, franceses, russos e portugueses. Quem não se lembra das “Novelas do Minho”, de Camilo Castelo Branco, do “Tartarim de Tarascon”, de Alphonse Daudet, ou, ainda, de “A Fortuna de Roaring”, de But Harte?

“As Noites e os Dias”, contudo, poetizam, nas linhas e nas entrelinhas, com a melhor técnica do “realismo mágico” (melhor porque espontâneo, nunca forçado), e o que, de resto, parece absurdo, nele deflui com a naturalidade dos sonhos. Se não, vejamos: na postura convencional, porém ambígua, é Lourenço Estevão que, “depois de vinte anos de morto, voltava para se vingar”. Numa outra dimensão, como parte de um comportamento que soma deveras com as raízes que interligam a história com a geografia, as personagens do livro aparecem imunes à surpresa e aos acontecimentos que urdem a tragédia, como se, acostumados aos rigores da sorte, já estivessem na pele daqueles que se foram. A fé, que remove montanhas, acompanha, sem hesitação, o áspero ritmo das alparcatas sobre o pedregulho dos caminhos, enquanto a face dos mártires anônimos toca as estrelas.  
São doze contos, como doze são as horas do dia, como doze, também, são as horas da noite. De sua leitura, a ressonância dos fatos descritos, o látego intenso das frases saídas da terra, como a correia sai do couro: “Amarelo, tremendo de malária, uma crosta de grude no corpo que não largou nem raspada com telha velha” (“O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, pag.12). Em “Rabo-de-Burro”, a mulher perseguida pelo falso lobisomem “sentia seu corpo triturado pelos olhos dos homens” (pag.21). “Dolorida” é um monólogo dramático, com rasgos assim: “Agora tudo é longe. Tá escuro sem ser noite. E este morto aqui marca meu tempo. O que foi que eu deixei de ver?”(pag.30). No conto “Inácia Leandro”, tenso e absorvente até a última linha, a presença de Lourenço Estevão “com cinco balas no corpo e o seu riso de menino”, como que se repete: “Aquele desconhecido, naquela noite, tinha a face de um destino”. ”A Faca” é um achado e uma encruzilhada de sombras, em torno de um crime: “O vaqueiro guardou, até o fim da vida, o brilho nos olhos, aquele pássaro de asas prateadas escapulindo da morte”. “Eufrázia Menezes” concentra o melhor na difícil técnica do solilóquio, e tudo, neste conto, pode ser destacado como “pedra de toque”, sem muita escolha. Por exemplo: “Estamos os dois neste universo de ausências: ele dormindo e eu acordada. Atrás de nós, uma casa nos ata a este mundo. É imensa, caiada de branco, com portas e janelas ocupando o cansaço de um dia em abri-las e fechá-las. Fechada, ela lacra a alegria dos seus antigos donos, seus retratos nas paredes, celas gastas, metais azinhavrados, telhado alto que a pucumã vestiu”.

E daí por diante. Ronaldo Correia de Brito sabe, como ele só, que o gesso do conto não recusa a experiência do teatro, nem as audácias inovadores da linguagem, que induzem à poesia. São estes, portanto, os valores da escrita basicamente ligados ao material da pesquisa, aos lastros da memória e ao discernimento sociológico na observação direta dos fatos com que ele esmurra a consciência de seus contemporâneos. A realidade destes contos, dosados pelo fantástico, darão às realidades a que estamos habituados qualquer coisa semelhante a um passo a mais, em direção a nós mesmos. Trata-se, sem dúvida, de um verdadeiro livro-monumento.