Zemaria Pinto
Confissão – A poesia lírica, por ser a expressão de um “eu”, tende, muitas vezes, a revelar algo do autor, porque ele coloca na sua poesia a sua vivência, a sua experiência. Seria estúpido, como já se tentou tantas vezes, buscar montar a biografia de Augusto dos Anjos a partir de seus poemas. Algumas fantasias relacionando assassinato e intrigas familiares já tomaram o tempo de muita gente séria. Mas o que importa é a obra do autor em si mesma - ela se basta.
No Eu, podemos notar inúmeras referências autobiográficas de Augusto dos Anjos. A sua geografia parece muito limitada: o Engenho, Recife, a família. Mas é a partir desse mundinho circunscrito que ele elabora o seu discurso cósmico. O tamarindo, por exemplo, é objeto de culto ainda hoje, quando os leitores mais abnegados do poeta vão atrás do velho tamarindo onde um dia foi o Engenho Pau d’Arco:
Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar aos noticiários que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!
Estes versos, extraídos do poema Debaixo do tamarindo mostram bem a dimensão que o poeta emprestava à árvore. Leia também Vozes da morte, onde o poeta diz ao tamarindo “vamos morrer, reunidos”.
O Engenho Pau d’Arco é outra recorrência autobiográfica. Leia a primeira estrofe, de entonação árcade, do poema Tristezas de um quarto minguante:
Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Autorreferências também ocorrem, veja:
Restavam só de Augusto... (Os doentes)
Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto... (Gemidos de arte)
...Desde que, 6a feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?! (Tristezas de um quarto minguante)
Quatro poemas, entretanto, são construídos com a matéria bruta da vida: o Soneto dedicado ao filho nascido morto; os três Sonetos dedicados ao pai (doente, morto, podre); e Ricordanza della mia gioventú, sem dúvida uma ironia com os parnasianos, que usavam dar títulos em italiano a seus poemas. Em Augusto dos Anjos, entretanto, além do assunto sórdido (o furto), observa-se uma contundente reflexão sobre as divergências sociais:
A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“– Não, não fora ela”! – E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Esclareça-se: Doutor era o apelido de um tio do poeta; Sinhá-Mocinha era como chamavam a D. Córdula dos Anjos, a mãe do poeta. Propositalmente, leitor, você deve ter observado, ao falarmos sobre os poemas confessionais, a “voz” do poema foi chamada de “poeta” e não de “eu lírico”. Por motivos óbvios.
Atmosfera – a poesia de Augusto dos Anjos é toda envolvida por uma atmosfera sombria. Podemos observar, como uma das características de sua linguagem, a manipulação dessa atmosfera. É como se o autor elaborasse alguns poemas com uma certa dose de suspense. Vamos exemplificar melhor o que afirmamos. Observe as estrofes iniciais do já citado As cismas do destino:
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
O primeiro verso situa o leitor no espaço: o “eu lírico” caminha pela ponte Buarque de Macedo, na cidade do Recife. Absolutamente prosaico, não? Mas os versos da sequência acabam por dar uma dimensão diferente àquele primeiro. Diga-se que a casa do Agra é uma casa funerária naquela cidade. Imagine o “eu lírico” a caminhar, tendo por companhia apenas a própria sombra, enorme, dirigindo-se, talvez, ao velório de um conhecido. Pensar no destino é pensar no futuro e, consequentemente, na própria morte. Ao relermos o primeiro verso, a nova dimensão se sobressai: aquela ponte, naquela cidade, à noite, é um lugar assustador.
Muitas outras vezes o autor usou o mesmo recurso. Observe, mas não deixe de ler os poemas integralmente, para melhor perceber o que afirmamos:
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. (O morcego)
Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora, (Os doentes)
Noite no Egito. O céu claro e profundo (...) (Uma noite no Cairo)
Madrugada de Treze de Janeiro. (Sonetos II - A meu pai morto)
Número cento e três. Rua Direita. (Noite de um visionário)
Toma um fósforo. Acende teu cigarro! (Versos Íntimos)
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. (Poema negro)
Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo (...) (Insônia)
Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. (Mistérios de um fósforo)