Amigos do Fingidor

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Uma análise do Eu – 12/13

Zemaria Pinto



Confissão – A poesia lírica, por ser a expressão de um “eu”, tende, muitas vezes, a revelar algo do autor, porque ele coloca na sua poesia a sua vivência, a sua experiência. Seria estúpido, como já se tentou tantas vezes, buscar montar a biografia de Augusto dos Anjos a partir de seus poemas. Algumas fantasias relacionando assassinato e intrigas familiares já tomaram o tempo de muita gente séria. Mas o que importa é a obra do autor em si mesma - ela se basta.

No Eu, podemos notar inúmeras referências autobiográficas de Augusto dos Anjos. A sua geografia parece muito limitada: o Engenho, Recife, a família. Mas é a partir desse mundinho circunscrito que ele elabora o seu discurso cósmico. O tamarindo, por exemplo, é objeto de culto ainda hoje, quando os leitores mais abnegados do poeta vão atrás do velho tamarindo onde um dia foi o Engenho Pau d’Arco:

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar aos noticiários que eu morri, 

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade  
A minha sombra há de ficar aqui! 

Estes versos, extraídos do poema Debaixo do tamarindo mostram bem a dimensão que o poeta emprestava à árvore. Leia também Vozes da morte, onde o poeta diz ao tamarindo “vamos morrer, reunidos”.

O Engenho Pau d’Arco é outra recorrência autobiográfica. Leia a primeira estrofe, de entonação árcade, do poema Tristezas de um quarto minguante 

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Autorreferências também ocorrem, veja:

Restavam só de Augusto... (Os doentes)

Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto... (Gemidos de arte)

...Desde que, 6a feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?! (Tristezas de um quarto minguante) 

 O poema Noite de um visionário começa com um verso inusitado: “Número cento e três. Rua Direita.” Este era, leitor, nada menos que o endereço do poeta na Paraíba.

Quatro poemas, entretanto, são construídos com a matéria bruta da vida: o Soneto dedicado ao filho nascido morto; os três Sonetos dedicados ao pai (doente, morto, podre); e Ricordanza della mia gioventú, sem dúvida uma ironia com os parnasianos, que usavam dar títulos em italiano a seus poemas. Em Augusto dos Anjos, entretanto, além do assunto sórdido (o furto), observa-se uma contundente reflexão sobre as divergências sociais: 

A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína! 

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
Não, não fora ela”! E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava. 

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha... 

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!    

Esclareça-se: Doutor era o apelido de um tio do poeta; Sinhá-Mocinha era como chamavam a D. Córdula dos Anjos, a mãe do poeta. Propositalmente, leitor, você deve ter observado, ao falarmos sobre os poemas confessionais, a “voz” do poema foi chamada de “poeta” e não de “eu lírico”. Por motivos óbvios.

Atmosfera – a poesia de Augusto dos Anjos é toda envolvida por uma atmosfera sombria. Podemos observar, como uma das características de sua linguagem, a manipulação dessa atmosfera. É como se o autor elaborasse alguns poemas com uma certa dose de suspense. Vamos exemplificar melhor o que afirmamos. Observe as estrofes iniciais do já citado As cismas do destino: 

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo! 

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo. 

O primeiro verso situa o leitor no espaço: o “eu lírico” caminha pela ponte Buarque de Macedo, na cidade do Recife. Absolutamente prosaico, não? Mas os versos da sequência acabam por dar uma dimensão diferente àquele primeiro. Diga-se que a casa do Agra é uma casa funerária naquela cidade. Imagine o “eu lírico” a caminhar, tendo por companhia apenas a própria sombra, enorme, dirigindo-se, talvez, ao velório de um conhecido. Pensar no destino é pensar no futuro e, consequentemente, na própria morte. Ao relermos o primeiro verso, a nova dimensão se sobressai: aquela ponte, naquela cidade, à noite, é um lugar assustador.

Muitas outras vezes o autor usou o mesmo recurso. Observe, mas não deixe de ler os poemas integralmente, para melhor perceber o que afirmamos: 

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. (O morcego)

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora, (Os doentes)

Noite no Egito. O céu claro e profundo (...) (Uma noite no Cairo)

Madrugada de Treze de Janeiro. (Sonetos II - A meu pai morto)

Número cento e três. Rua Direita. (Noite de um visionário)

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! (Versos Íntimos)

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. (Poema negro)

Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo (...) (Insônia)

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. (Mistérios de um fósforo)

 O uso desse recurso de “suspense” introduz o leitor em uma atmosfera sombria, que pode ser um ambiente de horror ou o anúncio de um momento crítico.