Amigos do Fingidor

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Originalidade e permanência em Ernesto Nazareth

Zemaria Pinto



No princípio era o cateretê. Mas aí vieram os jesuítas, com seu insípido cantochão, abafando o som tupi. Depois vieram os negros africanos, e com eles, a raiz mais profunda da música brasileira: o lundu. O poeta barroco Gregório de Matos, no século XVII, fez os primeiros registros daquela dança no Brasil. “Batuque negro, extremamente sensual e insinuante”, o lundu foi absorvido, dois séculos mais tarde, pela aristocracia, sob a forma de lundu-canção. A libidinosa umbigada dançada nas ruas por negros, mulatos, ladinos e boçais dava lugar a uma coreografia europeia que iria desaguar na modinha, casamento entre melodias comportadas e poemas de – nem sempre – realçado valor literário, como na Espanha e no Portugal medievais...

O troco popular não tardou. Em meados do século XIX, o Rio de Janeiro recebia inúmeras companhias europeias de teatro musicado. A polca, de origem eslava, e a habanera, de raízes cubanas, tomam, então, as ruas da cidade, reinventando o lundu sob a forma de maxixe. Todo o estigma que durante séculos acompanhou o lundu volta-se agora para o maxixe, que domina as gafieiras com a força lúdica do querer popular. Saltando algumas décadas, chegamos a 1917: o primeiro samba gravado, o lendário Pelo Telefone, não passa de um maxixe. Aí veio o samba-canção, a bossa-nova... Mas essa é uma outra história.

No então pacato Rio de Janeiro de exatos 130 anos atrás, mais precisamente no humilde Morro do Nheco (hoje, Morro do Pinto), nascia Ernesto Nazareth, o “caso” mais singular da música brasileira. Filho de um funcionário público e uma pianista diletante, o pequeno Ernesto foi iniciado desde muito cedo nos segredos do teclado por sua própria mãe, que, entretanto, deixou-o órfão aos 10 anos de idade. Poderia ter sido interrompida ali a história de um dos mais brilhantes criadores de nossa música, mas o amor pelo instrumento, herdado de D. Carolina, sensibilizou o Sr. Vasco Nazareth, que colocou o menino sob os cuidados de um novo professor, Eduardo Madeira, cuja atividade principal era a de funcionário do Banco do Brasil. Esses pequenos detalhes servem para ilustrar a deficiente formação técnica de Ernesto Nazareth, ao mesmo tempo em que realçam sua extraordinária intuição. Aos 14 anos, Ernesto apresentou ao Prof. Madeira sua primeira peça: a polca-lundu Você Bem Sabe, dedicada ao pai. Entusiasmado, o mestre levou-a ao editor Arthur Napoleão, que não hesitou em publicá-la. Daí em diante, Ernesto Nazareth viveu de música e para a música, compondo, ensinando e tocando – em aniversários, batizados, lojas de música e cinemas.

Sobre o ofício de tocar piano, são necessários alguns esclarecimentos acerca da vida cotidiana do início do século XX. Os cinemas mais requintados ofereciam espetáculos musicais nas suas espaçosas salas de espera, e, pelo preço de um ingresso, poder-se-ia passar a tarde ouvindo, por exemplo, a orquestra do maestro Andreozzi, cujo destaque era um moço violoncelista chamado Heitor Villa-Lobos. Quanto às lojas de música, além de instrumentos, vendiam partituras. Numa época em que não havia ainda o rádio e os discos eram raríssimos, a única maneira de conhecer as novidades musicais era através dos pianistas que as lojas contratavam para promover “demonstrações” das partituras à venda.

Tendo vivido a plenitude do maxixe e dos chorões – conjuntos formados basicamente por flauta, violão e cavaquinho –, Ernesto Nazareth desenvolveu um gênero musical diferente de tudo o que se fazia à época: o tango. E ao piano. É no instrumento, aliás, que começam as divergências entre o caráter popular e/ou erudito da obra de Ernesto Nazareth: exímio pianista, ele transcrevia para o seu instrumento as sonoridades peculiares aos instrumentos dos chorões. Mas, ao contrário destes, não permitia que se dançasse enquanto tocava. Queria ser ouvido. Durante muito tempo falou-se que Ernesto Nazareth escondia sob o rótulo de tango simples maxixes, o que muitos compositores da época faziam para driblar o preconceito que determinava ser o maxixe música própria dos estratos sociais mais baixos. O poeta Mário de Andrade, entretanto, observa que Ernesto imprime aos seus tangos andamento menos vivo que o do maxixe, com uma sutileza chopiniana:



Si é verdade que a harmonização de Ernesto Nazareth segue o modelo geral das modulações cadenciais, esse simplismo popular é disfarçado por um cromatismo saboroso, uma pererequice melódica difícil, em que a todo momento surgem notas alteradas, chofrando na surpresa da gente com o inesperado de inhambu abrindo voo. E então com que ciência habilidosa ele equilibra as sonoridades! As harmonizações, os acordes, as oitavas, os saltos arrevezados, audaciosíssimos até, jamais não desequilibram a ambiência sonora.



Foi Brejeiro, publicado em l893, quando Ernesto contava 30 anos, a primeira obra a enquadrar-se no novo gênero, “uma adaptação nacional da habanera”, segundo palavras do próprio compositor. Aqui se faz necessário novo esclarecimento: o tango brasileiro não tem nada em comum com o homônimo argentino, além da influência da habanera. Esse traço único fica excepcionalmente marcado na audição de Plangente, que Ernesto anotou como “tango brasileiro com estilo de habanera”: um dolente bandoneon como que percorre toda a execução, lembrando a dicção característica do gênero portenho. Ary Vasconcelos, em seu excepcional “Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque”, anota entre as duzentas e quinze peças deixadas pelo compositor somente um “tango argentino”: Nove de Julho, publicado em l917. O tango brasileiro desenvolvido por Ernesto Nazareth é alegre, viçoso, mordaz, envolvente. Só não é triste. Vejamos alguns títulos esclarecedores: Escorregando, Escovado, Fon-Fon, Batuque, Cutuba, Dengoso, Catapruz, Espalhafatoso, Xangô, Tudo Sobe e tantos, tantos outros. Na verdade, o tango brasileiro teve seu primeiro registro em l871, com a publicação de Olhos Matadores, a obra lançadora do gênero. Ernesto Nazareth reverencia seu criador, em l914, com o tango Mesquitinha, dedicado “à memória do grande Maestro Henrique Alves de Mesquita”.

Mas nem o grande sucesso popular, nem o reconhecimento ainda em vida da excepcional importância de sua obra, lograram dar a Ernesto Nazareth maior conforto material. Da infância no morro a uma vida cheia de atribulações – em certa época passou 8 anos sem um piano próprio –, Ernesto chegou aos 70 anos completamente surdo e vítima de grave perturbação mental. Internado pela segunda vez na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, evadiu-se no dia  1o de fevereiro de l934. Três dias depois foi encontrado na Cachoeira dos Ciganos. Sob a água, o corpo enrijecido projetava os longos braços para a frente, como a procurar um teclado invisível.

Presença obrigatória no repertório dos nossos grandes pianistas, “a verdadeira encarnação da alma musical brasileira”, como avaliava o amigo Villa-Lobos, é também presença constante no repertório dos chorões que ainda resistem por aí.

Por fim, uma deliciosa curiosidade: o tango Topázio Líquido foi editado em Manaus, em l914, por encomenda de Maximino Correa, da Cervejaria Amazonense, a Ernesto Nazareth, sendo oferecido como brinde a seus refinados clientes. XPTO.
(Escrito para um sarau realizado pela Escola de Música Ivete Ibiapina, em 1993)
Ernesto Nazareth, aos 70 anos.