Amigos do Fingidor

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O bibliófilo

Inácio Oliveira

Em memória de Rubens Borba de Moraes

Hoje a luz desta tarde e a solidão destas estantes me trazem a lembrança de Rubens Borba de Moraes. Ignoro se Heráclito ou Parmênides que disse que um homem morre quando o último esquece. Certas pessoas tornam-se de modo que eternas e permanecem vivas na memória daqueles que as conheceram. Rubens continua vivo na minha memória, posso imaginar o impossível diálogo que teríamos sobre os incunábulos do século XV ou sobre os e-books de hoje.

Conheci Rubens no fim dos anos 50 em Nova York, era o inverno de janeiro, a neve caia nas calçadas e nós, os estrangeiros, nos sentíamos mais sozinhos. Nessa época Rubens era diretor da Biblioteca da ONU, ele já tinha o cabelo grisalho e a expressão de alguém que já havia vivido muitas coisas, eu era aluno bolsista da Fundação Rockefeller, onde ele havia estudado anos antes. O conheci durante um congresso sobre biblioteconomia e ciência da informação, na ocasião ele palestrou sobre a arte do bibliográfo, havia recentemente publicado a sua grandiosa Bibliographia brasiliana. Era sua grande paixão, obras de brasiliana do período colonial.

Ficamos amigos apesar da idade, e enquanto morei nos Estados Unidos Rubens foi sempre uma pessoa com quem eu pude contar. Ensinou-me muitas coisas e o amor que hoje eu devoto aos livros, em parte, se deve a ele. Ele me transmitiu o fascínio e a emoção de “caçar” um exemplar raro, lembro de nossas caminhadas pelos sebos de Nova York e de nossas longas conversas, invariavelmente, sobre livros e sobre tudo que dissesse respeito a eles. Era homem de uma vasta erudição e dono da sutil ironia daqueles que sabem um pouco mais. Eu que tantas vezes, fascinado e invejoso, estive diante da sua exuberante coleção de brasiliana sei que ele ficaria feliz se entrasse aqui e visse a minha pequena coleção de primeiras edições de escritores modernistas, que seus sábios conselhos ajudaram a construir.
Rubens estudou em Genebra e Estados Unidos, foi um grande bibliotecário e bibliógrafo, e um bibliófilo apaixonado; quando jovem participou da realização da Semana de Arte Moderna em 1922, colaborou, entre outras, com a criação da revista Klaxon, foi amigo de Mário de Andrade e outros escritores; foi um homem engajado politicamente de pensamento progressista e lutou na Revolução Constitucionalista de 1932, foi diretor da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e de tantas outras, trabalhou para a ONU em Paris e Nova York, foi professor emérito da Universidade de Brasília e condecorado com a Ordem de Rio Branco como comendador. Um homem que fez tudo que devia fazer, que conquistou tudo que podia conquistar, que, enfim, cumpriu o seu dever, pode morrer em paz, mas para continuar vivendo ele precisa de um motivo, de um propósito, de uma missão, porque talvez sem isso a vida plena e feliz não seja possível.

E foi assim que em uma de nossas muitas conversas, quando Rubens já estava aposentado nos anos 70, que ele me confidenciou.  – Eu tenho uma missão na vida: possuo um livro raríssimo, trato esse livro com carinho há mais de vinte anos. Trata-se de um belíssimo exemplar com uma encadernação harmoniosa de uma obra impressa em 1688. O que torna esse exemplar ainda mais raro é o fato dele trazer a assinatura do seu primeiro dono datada de 1689, logo abaixo vem outra assinatura com a data de 1789, e em seguida outro nome com a data de 1889, é evidente que esse livro exige de seu dono, quando chegar o ano de 1989, que ele escreva seu nome abaixo dos demais. Essa é a minha missão de vida agora: viver até o fatídico ano para, com grande prazer e emoção, escrever meu nome na lista centenária. Ele já estava com 78 anos, então eu lhe desejei boa sorte na sua missão que era simplesmente: viver.

Passaram-se os anos e os percalços da vida nos afastaram, mas não apagaram nossa amizade. Sempre que eu vinha a São Paulo fazia questão de visitá-lo, a ele e sua coleção de brasiliana. Na última de nossas conversas ele me mostrou o tal exemplar, realmente era uma edição primorosa. Com suas mãos trêmulas e cansadas ele abriu o livro e disse. – Fico perplexo toda vez que abro este livro, pergunto-me se viverei até o ano de 1989. Sinto vontade de escrever meu nome imediatamente nesta lista, mas não posso trapacear; então vivo com cautela, viver é muito dificultoso. Seria uma injustiça se eu morresse antes, você não acha?

Gostava de imaginar o momento em que Rubens Borba de Moraes escreveria o seu nome na lista de proprietários do livro, até que no dia 2 de setembro de 1986 numa tarde fria de São Paulo, apenas três anos antes, uma injustiça aconteceu.