Amigos do Fingidor

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Uma análise do Eu – 13/13

Zemaria Pinto
  

Adjetivos – Chama a atenção na poesia de Augusto dos Anjos o uso excessivo dos adjetivos. Qualquer outro autor, que não um mestre, perder-se-ia em meio a tanta adiposidade... Aqui, entretanto, temos, quase sempre, o adjetivo reforçando o significado do substantivo, que, sozinho, não teria a mesma expressão. Vejamos algumas combinações inusitadas: 

(...) caos telúrico (...) cósmico segredo (Monólogo de uma sombra)

Brancas bacantes bêbadas o beijam. (idem)

(...) e a hialina lâmpada oca, (As cismas do destino)

Os sanguinolentíssimos chicotes da hemorragia; (idem)

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo (Sonho de um monista)

Levando apenas na tumbal carcaça (Solitário)

Nas quietudes nirvânicas mais doces (Os doentes)

A ruína vegetal dos lírios secos. (idem)

Licenças poéticas – Outro recurso de que Augusto dos Anjos se vale inúmeras vezes é o deslocamento da sílaba tônica da palavra. O poeta faz isso para conseguir um efeito mais musical. Observe a seguinte estrofe, de Os doentes:

A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periféria! 

A palavra “periféria”, você sabe, não existe; o correto é “periferia”. Mas se o autor mantivesse a palavra correta, ele teria dois problemas: 1 - perderia a rima com “deletéria”; 2 - teria um verso com onze sílabas poéticas e não com dez. O resultado final seria a perda da musicalidade do poema. A esse procedimento transgressor das normas gramaticais, que a poesia de versos livres e rimas brancas praticamente eliminou, chamamos de “licença poética”.

Eventualmente, o poeta transgride as próprias normas poéticas, buscando o efeito exato. Observe a estrofe abaixo, também transcrita de Os doentes: 

Mas, para além, entre oscilantes chamas,
Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
                   Se extenuavam nas camas.  

O poema é todo composto em decassílabos, mas o último verso da estrofe acima é um heptassílabo. Em vez de procurar um verso de dez sílabas que se adequasse à norma, o poeta optou pela concisão e a simplicidade das sete sílabas, sem perder a eufonia. Você pode se exercitar, leitor, descobrindo outras “liberdades”, e são muitas, de Augusto dos Anjos. 

É preciso concluir 

Nosso trabalho acabou se estendendo muito além das previsões iniciais. Isto se explica: a obra de Augusto dos Anjos é complexa e apaixonante. Muitos ainda se debruçarão sobre ela buscando melhor compreendê-la. Esgotá-la? Falta muito, ainda, principalmente porque boa parte da crítica literária brasileira ainda lhe torce o nariz, apesar do empenho de uns poucos abnegados em mostrar o seu verdadeiro valor.

O público de Augusto dos Anjos que, espontaneamente, fez vir à luz dezenas de edições do Eu, fazendo-o um dos poucos poetas realmente populares do Brasil, começa a ir para as universidades, e busca entender, “cientificamente”, o seu poeta. Não deixa de ser irônico que, numa época em que a poesia brasileira parece viver um impasse, uma absoluta falta de caminhos, o “marginal” Augusto dos Anjos seja dissecado em público, como um personagem de Rembrandt, para que se mostrem as vísceras da verdadeira poesia, e se pensem em novos caminhos.

Alguém já disse que a crítica brasileira não gosta do sucesso. Parece que aquilo que o público entende não precisa do trabalho esclarecedor da crítica. No caso de Augusto dos Anjos, a razão do sucesso (e do consequente desprezo da crítica), parece ser a sua incrível atualidade: 100 anos depois da publicação do Eu, percebemos que a humanidade, a despeito de todos os avanços das ciências, está apenas 100 anos mais doente. Infelizmente.