Jorge Tufic
Há um conto de Vladlen Baknov em que o segredo do presente, quando vamos à sua procura no futuro, transfere-se para de onde partimos e muda de identidade, talvez para que jamais se possa decifrar, mesmo com a incrível ajuda de um tempomóvel, os complicados engenhos da mente em condição de projetar-se além das fronteiras de meio século. O autor põe na berlinda um poeta que os seres do futuro chamam de Balabachkin, pobre e anônimo em seu tempo de origem. Assim, quando ele é descoberto, ajudado e torna-se famoso, o condutor do tempomóvel regressa ao futuro com a finalidade de saber qual teria sido o fim do seu grande contemporâneo. E descobre, assustado, que o Balabachkin conhecido e venerado pelos seus descendentes, nada tinha a ver com aquele outro que, embora tivesse seu nome, a fim de evitar confusão e por modéstia, publicava seus versos sob o pseudônimo de U. Pimenzonoff.
Esta ficção científica nos serve para demonstrar duas coisas: a preocupação de nossos contemporâneos com aquilo que os antigos chamavam de posteridade, e a pouca importância que os poetas, gênios ou simples lavradores do sonho dão a essa coisa que tanto preocupa os ingênuos construtores de abrigos atômicos e caixas de memórias para o futuro hipotético. Convivendo com poetas desde a minha infância, eu lhes posso dizer que o poeta já nasce e já é. O futuro é o seu presente e o seu presente é, obviamente, o seu futuro. Alguns poetas que no passado não foram nem mesmo percebidos, hoje viraram ídolos. Sousândrade é um exemplo. Todavia, não quer isso dizer que eles, em sua época, deixaram de ser reconhecidos por alguma deficiência relativa ao modo pelo qual escreviam. O status cultural e as preferências de gosto variam no espaço e no tempo. Todos os grandes nomes da poesia universal somente foram reconhecidos depois de mortos. Mas isso não significa que muitos poetas vivos não estejam vivendo a sua glória que um futuro remoto, por circunstâncias alheias à sua vontade, deixe de aceitá-la como válida num plano, digamos, de usos e costumes, onde a palavra, o logos, a comunicação poética em nível exclusivamente do lúdico e do onírico, passem a uma categoria de pesquisa simplesmente de caráter psiconeurovegetativo.
Neste seu livro Curvas do Tempo, como em seu principal caudatário Angústia Numeral, Antísthenes Pinto procura registrar e transmitir as impressões de um mundo que pode ser visto do futuro, conforme o poema 42, que abre o volume: “extinto cais”, “mortas paragens”. A lua é natimorta. O barco é mortuário. E o grito do mocho “arde nas labaredas do dia”. Em seu longo poema feito por fragmentos, a visão que nos dá é de sucessivos “autos de fé”, nos quais até mesmo as borboletas se aposentam, e o vento leva, de pronto, o seu dono. As coisas, os seres e sobretudo a própria poesia, em busca feroz da metáfora que lhe demonstre o grau de purificação pela destruição a que chegaram – se vestem daquela inquietude que, em certas passagens da obra, ganham uma técnica adequada ao transe de surrealidade (fragmento 66), onde o criador se autocondena a um suplício maior que o de Prometeu. Isto é, ao mesmo tempo que aves mortas lhe bicam os rins e o coração, ele grita qualquer coisa pro gato que engoliu sua mão. Aí está, sem dúvida, o verdadeiro suplício do poeta, em debate com o mito da expressão que, no fundo mesmo, se traduz por uma “pressão” e uma “expressão” dentro de um continuum que é o poema.
Por outro lado, uma atmosfera de percepção kafkiana habilita-se a fornecer vários outros aspectos de análise, com prevalência naturalmente da necessidade de um estudo sobre a forma ou a estrutura do verso, sempre, vale observar, paralela ao jugo dos símbolos de que o poeta se utiliza para expressar o ilógico e o análogo de seu orbe particular. Um particular, no entanto, vazado nos códigos de todos os dias e de todas as gentes, embora nele apareçam “baratas verdes”, “voz de incêndio”, “peixe de sol”, “clamor ferrugem”, “negror diurno”, “pânico em repouso”, “lago áspero”, “suor do mundo”, “rio-usina”, “abelhas louras”, “praça alada”, entre muitos exemplos. O símbolo, como em James Joyce, é o elemento básico da expressão. O signo, aliado ao símbolo, na conceituação de Saussure, é o que constitui a essência da linguagem.
Deste modo, nem sempre a poesia que denominamos moderna é entendida por alguns que, ainda habituados ao verso conceitual, estranham ou simplesmente evitam o esforço de não confundi-la com a prosa. O lirismo e a transcendência da poesia, por serem de natureza conotativa, diferem, assim, daquela, mais afeita ao registro direto dos fatos e acontecimentos do nosso cotidiano. Esse mesmo cotidiano que em Antísthenes Pinto representa uma espécie de aventura como “restauração” de tantas coisas e objetos aparentemente vulgares, mas que, depois de recolhidos na malha sensível do poema, lembram um exercício frequente do grande Manuel Bandeira. O autor de Belo Belo, dizem Gilda e Antônio Cândido, “repetia no plano da palavra a experiência dos cubistas e surrealistas nas colagens (papiers collés). Erguia-as do entulho a que o gosto médio as havia reduzido para de novo insuflar-lhes o sopro da Poesia, da mesma forma que os pintores retiravam dentre os detritos da cesta de papel os pregos, rolhas, caixas de fósforos vazias, pedaços de barbante e de estopa com que iriam trabalhar a superfície da tela. Num caso como no outro, a emoção artística surgia dessa promoção do objeto que, colocado num contexto novo, irradiava magicamente à sua volta um novo espaço artístico, onde ao fluente encadeamento lógico se substituía uma organização de choque”.
Além desse tratamento de choque, Curvas do Tempo revela a dureza da vida e do trabalho, na faina de construir e destruir em nome da sobrevivência material. A presença do homem é nula em seus poemas. Mas quem não sente e vê, como as águas refletem e o sopro da brisa alivia, esses vultos esquálidos no ofício de quebrar pedra debaixo da ponte, com “mãos de pedras humanizando pedras”? Mais adiante o poeta lamenta a impossibilidade de captar um poema “se as árvores encardidas na praça mostram ossos em vez de folhas”. Bem humorado, andando um passo à frente de sua época, Curvas do Tempo leva, com certeza, à descoberta de “efeitos supostamente não relacionados”, onde a lucidez, ao contrário da loucura, mostra a realidade exatamente como relutamos por não aceitá-la. O mundo caminha para isso. E a poesia também.