Amigos do Fingidor

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De Catulo a Simão Pessoa – dois mil anos de poesia e escracho 2/4

Zemaria Pinto


Marcial – Na língua de Catulo, outros poetas mantiveram acesa a chama do lirismo que vê além das pequenas grandes dores individuais, rindo-se de si mesmos ou tematizando o amor e o erotismo muito além do permitido pela moral vigente: o elegíaco Propércio, o decadente e censurado Ovídio e o epigramático Marcial sobreviveram a dois mil anos de guerras, revoluções, flagelos e boleros. Marcial, tendo vivido no primeiro século da era cristã, é o grande cronista daquela época, com seu estilo conciso e alegre:


Afra tem amas e amos – mas é ela
a maior mama entre amos e mucamas.
(8)

Corre o rumor,Chione: nunca foste fodida,
e nada mais puro existe que tua cona.
Nessa parte (por vestes velada) nem te lavas.
Se é pudor, desnuda a cona e vela a face.
(9)

A Faixa Peitoral

Comprime, de minha amante, os dois seios em botão
para que caibam sempre no oco de minha mão.
(10)



Mas se o título deste artigo fala em dois mil anos de poesia, e até agora mal chegamos a cem, demos um salto no tempo e no espaço, e observemos a lírica escrachada da última flor do Lácio. O que quer, o que pode esta língua?

 

Gregório de Matos – Segunda metade do século XVII, Bahia. Gregório de Ma­tos, o Boca do Inferno, é a gargalhada barroca aprisionada durante séculos em sonetinhos de piedade e arrependimento, só recentemente libertada. Gregório escarnece de políticos, do clero, do povo e de si mesmo, dessacralizando modelitos seculares, e criando em língua portuguesa as bases mais sólidas das vanguardas do século XX. A pro­pósito, o cardeal Augusto de Campos apaixona-se:


Há muito mais novidade, mais juventude em Gregório do que em muito blá blá blá de vanguarda que anda por aí. Gregório já rompe os limites entre a poesia de produção e a de consumo: faz poemas requintadíssimos e faz canção popular, vai do grosso ao fino, do bronco ao barroco, com a maior liberdade.

 

Vejamos alguns fragmentos, como exemplo, das “Queixas Da Sua Mesma Verdade”, onde o poeta define os “maos modos de obrar na governan­ça da Bahia”:


1 Que falta nesta cidade?..................................................... Verdade
Que mais por sua desonra................................................. Honra
Falta mais que se lhe ponha............................................... Vergonha


O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,

numa cidade,onde falta
Verdade, Honra,Vergonha.


3 Quais são os seus doces objetos?..................................... Pretos
Tem outros bens mais maciços?........................................ Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...................................... Mulatos

Dou ao demo os insensatos,

dou ao demo a gente asnal,

que estima por cabedal

Pretos, Mestiços, Mulatos.

 

5 E que justiça a resguarda?................................................. Bastarda
É grátis distribuída?........................................................... Vendida
Que tem,que a todos assusta?.............................................Injusta

Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

 



7 E nos Frades há manqueiras?............................................ Freiras
Em que ocupam os serões?............................................... Sermões
Não se ocupam em disputas?.............................................Putas

Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lides todas de um Frade
são Freiras, Sermões e Putas.

9 A Câmara não acode?....................................................... Não pode
Pois não tem todo o poder?............................................... Não quer
É que o governo a convence?............................................. Não vence



Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
não pode, não quer, não vence.


Quanta atualidade nestes trezentos anos de Gregório!

 

Traduções:
(8), (9): Luiz António de Figueiredo e Ênio Aloísio Fonda
(10): José Paulo Paes