Amigos do Fingidor

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

“Rasos d’água”, pélago profundo 1/2

 

Zemaria Pinto
 
Na apresentação da poesia reunida de Astrid Cabral – De déu em déu (1979-1994) –, Antônio Paulo Graça observou na obra duas linhas de força: “uma que investe na interioridade (pessoal e geográfica), outra que busca decifrar o enigma do exterior, sejam os países, sejam as ameaças da existência”. Graça analisava os cinco primeiros livros de poemas de Astrid. Dois livros se seguiram àquela coletânea: Intramuros, de 1998, e este Rasos d’água, cuja primeira edição é de 2003. Intramuros divide-se em três partes: o próprio título, “Jaula” e “Extramuros”. A primeira e a terceira confirmam, literalmente, a observação do crítico; a segunda parte não a nega.
A poesia de Astrid Cabral é mesmo toda feita dessa matéria que se forma na memória, sedimentada pelo tempo: pequenos acontecimentos cotidianos, domésticos; Rio de Janeiro, Recife, Manaus; Cairo, Beirute, Chicago; viagens, viandas, vertigens. A memória buscando o quando e o onde, e encontrando o talvez, amalgamado com os fatos da manhã chuvosa que não finda nunca. Confirmamos isso na leitura de Rasos d’água. Dividido em duas partes, “Copo de mar” e “Barquinhos de papel”, o livro é uma viagem épica pela memória líquida, das lágrimas à neve, banhando-se de chuva, perscrutando o mar, os rios inúmeros, em permanente tensão com o pathos da morte, que ora se aproxima e sangra, ora se afasta e observa a velhice inevitável, ora apenas lembra/relembra a dor para sempre represada.
Proponho ao leitor um passeio sequenciado pelos poemas de Rasos d’água. Será, assim, mais simples estabelecer as conexões com o mote que tomamos emprestado ao saudoso Paulo Graça. “Copo de Mar” abre com uma declaração que prepara o leitor para a viagem que se inicia:
 
(...) não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
 
A palavra “couraçado” deve ser lida com o duplo sentido que ela encerra: o metafórico, de navio de guerra, preparado para o combate mais violento; o literal, de armadura impenetrável, que deriva no entendimento de insensível, sem emoção. É isso o que pede o eu lírico: distanciamento para cantar os fatos que a memória guarda como ondas, ora de violentas tempestades marinhas, ora de pedrinha atirada formando círculos no lago sereno.
Os poemas que se seguem têm como motivos a perda e a sobrevivência, sempre na presença do elemento líquido:
 
Afinal, as coisas não mudaram nada
e ninguém suspeita
do naufrágio seguido de milagre.
Meus olhos, porém, mudaram o cosmos.
Puseram esta lágrima boiando
no rosto do mundo.
(Sobrevivência)
 
Por que esta ânsia de sobreviver
assim se amoita no âmago de mim (...)?
 
Por que morrer me assusta e paralisa
se o que temo perder, de longe sei
nada tem de eldorado ou paraíso?
(Crepúsculo)
 
O que me espanta
não é a morte
mas a vida, diga-se
a subvida da sobrevida.
(De coração partido)
 
O confronto Eros versus Tânatos parece não apontar vencedor. Mas a voz do eu lírico vai serenando, o soluço desatado transformando-se em doce lamento, até o equilíbrio resignado da convivência com a dor:
 
Mas esta dor não é algo
que se veste ou despe.
É coisa que respira comigo
algo por dentro da pele.
(A companheira)
 
A sequência de reflexões sobre a velhice é pontuada de autoironia e um leve amargor, mas sempre acompanhados de imagens de forte apelo poético:
 
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.
No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe.
(Metamorfose)
 
Não falta nem mesmo um toque (involuntário?) de humor ao reclamar da “falha divina”, recriando a velha anedota criacionista:
 
Por favor não falem de
maturidade e sabedoria.
Pois de que valeriam
atrasadas, sem serventia,
na instância de sufoco
do corpo em atrofia?
(Terceira idade)
 
A reflexão sobre o tempo deságua naturalmente no exercício da memória. Mas não são apenas registros de lembranças. Antes, intertextos com o presente:
 
Era a glória da inocência.
Ainda éramos meninas!
A dor só lambera a pele
não cravara ainda os dentes.
(Na glória)