Zemaria Pinto
Na apresentação da poesia reunida de Astrid Cabral – De
déu em déu (1979-1994) –, Antônio Paulo Graça observou na obra duas linhas
de força: “uma que investe na interioridade (pessoal e geográfica), outra que
busca decifrar o enigma do exterior, sejam os países, sejam as ameaças da
existência”. Graça analisava os cinco primeiros livros de poemas de Astrid.
Dois livros se seguiram àquela coletânea: Intramuros, de 1998, e este Rasos
d’água, cuja primeira edição é de 2003. Intramuros divide-se em três
partes: o próprio título, “Jaula” e “Extramuros”. A primeira e a terceira
confirmam, literalmente, a observação do crítico; a segunda parte não a nega.
A poesia de Astrid Cabral é mesmo toda feita dessa
matéria que se forma na memória, sedimentada pelo tempo: pequenos
acontecimentos cotidianos, domésticos; Rio de Janeiro, Recife, Manaus; Cairo,
Beirute, Chicago; viagens, viandas, vertigens. A memória buscando o quando e o
onde, e encontrando o talvez, amalgamado com os fatos da manhã chuvosa que não
finda nunca. Confirmamos isso na leitura de Rasos d’água. Dividido em
duas partes, “Copo de mar” e “Barquinhos de papel”, o livro é uma viagem épica
pela memória líquida, das lágrimas à neve, banhando-se de chuva, perscrutando o
mar, os rios inúmeros, em permanente tensão com o pathos da morte, que
ora se aproxima e sangra, ora se afasta e observa a velhice inevitável, ora
apenas lembra/relembra a dor para sempre represada.
Proponho ao leitor um passeio sequenciado pelos poemas
de Rasos d’água. Será, assim, mais simples estabelecer as conexões com o
mote que tomamos emprestado ao saudoso Paulo Graça. “Copo de Mar” abre com uma
declaração que prepara o leitor para a viagem que se inicia:
(...) não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
A palavra “couraçado” deve
ser lida com o duplo sentido que ela encerra: o metafórico, de navio de guerra,
preparado para o combate mais violento; o literal, de armadura impenetrável,
que deriva no entendimento de insensível, sem emoção. É isso o que pede o eu
lírico: distanciamento para cantar os fatos que a memória guarda como ondas,
ora de violentas tempestades marinhas, ora de pedrinha atirada formando
círculos no lago sereno.
Os poemas que se seguem têm
como motivos a perda e a sobrevivência, sempre na presença do elemento líquido:
Afinal, as
coisas não mudaram nada
e ninguém
suspeita
do
naufrágio seguido de milagre.
Meus
olhos, porém, mudaram o cosmos.
Puseram
esta lágrima boiando
no rosto
do mundo.
(Sobrevivência)
Por que esta ânsia de sobreviver
assim se amoita no âmago de mim (...)?
Por que morrer me assusta e paralisa
se o que temo perder, de longe sei
nada tem de eldorado ou paraíso?
(Crepúsculo)
O que me espanta
não é a morte
mas a vida, diga-se
a subvida da sobrevida.
(De coração
partido)
O confronto Eros versus Tânatos parece não
apontar vencedor. Mas a voz do eu lírico vai serenando, o soluço desatado
transformando-se em doce lamento, até o equilíbrio resignado da convivência com
a dor:
Mas esta dor não é algo
que se veste ou despe.
É coisa que respira comigo
algo por dentro da pele.
(A companheira)
A sequência de reflexões sobre a velhice é pontuada de
autoironia e um leve amargor, mas sempre acompanhados de imagens de forte apelo
poético:
Éramos potros selvagens
farejando precipícios
pelas pastagens do mundo.
No curral ainda nos sobra
a noção do tesouro perdido
e essa ração de memória
é a esmola que nos cabe.
(Metamorfose)
Não falta nem mesmo um toque (involuntário?) de humor
ao reclamar da “falha divina”, recriando a velha anedota criacionista:
Por favor não falem de
maturidade e sabedoria.
Pois de que valeriam
atrasadas, sem serventia,
na instância de sufoco
do corpo em atrofia?
(Terceira
idade)
A reflexão sobre o tempo deságua naturalmente no
exercício da memória. Mas não são apenas registros de lembranças. Antes,
intertextos com o presente:
Era a glória da inocência.
Ainda éramos meninas!
A dor só lambera a pele
não cravara ainda os dentes.
(Na glória)