Amigos do Fingidor

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

De Catulo a Simão Pessoa – dois mil anos de poesia e escracho 4/4


Zemaria Pinto

Capa da plaqueta, publicada em 1993.
Simão Pessoa – Num dia qualquer de não sei quando – não botou data na dedicatória –, procurei o stand da Livraria Cabocla. Feira do Li­vro, Praça São Sebastião: "você compra o livro aqui, o autógrafo é ali no Armando", me diz o Ruy. Era o Brinca Comeu Brinco, reunião de cinco livros anteriores, obra completa antes dos 30 anos. O pou­co que conhecia dos jornais escancarava-se naquele livrinho raro: o lirismo perverso, do tipo que antagoniza o leitor, avisava logo no primeiro poema de Old Fashioned:

sei que escrevo pra mim mesmo

E não havia sequer vestígios do remorso elementar com que é tratada a cultura aldeã. Dessacralizar a pasmaceira geral era a pa­lavra de ordem daquele exército individual:

caldeirada de bodó
moqueca de jaraqui
filé de tucunaré
costela de tambaqui
suco de jenipapo
batida de buriti
creme de graviola
sorvete de açaí
e no final do embate
a diarreia à la carte

Nem o guaraná velho de guerra era poupado:

no mercado central
turista quer guaraná
coitado pensa que é fácil
fazer pica levantar

Em Ócio dos Ofídios predomina um lirismo comprometido com um 1978 que parecia não ter fim. À maneira de Bacellar, poemas dedicados às frutas amazônicas, terenas, andirás e o belo "Distrito
Industrial". Ecológico antes da moda, jamais chato. Os poemas de Ca­rajo retomam a lírica escrachada, em sintonia com a manhã anunciada:

estava tão excitado
que nem tirou a chuteira
mordeu os seios com força
quase arrancou os mamilos
meteu o dedo na xana
arrebentou o clitóris
ainda se não bastasse
a ejaculação foi precoce
agora quer o divórcio
a mulher do torturador

Há registros de uma insuspeita alegria, denunciada pelas refe­rências infantis que pedem uma algazarra ao fundo:

Ivo ganhou uma ave
a ave de Ivo voa
baleei a ave do Ivo
Ivo ficou puto
Ivo me dedou pro velho
Ivo é um viado

Ou:

O cravo transou a rosa
debaixo de uma sacada
o cravo saiu sorrindo
a rosa descabaçada

Essa alegria não disfarçada tem seu contraponto natural na pla­cidez onírica de um poema que tem tudo para passar desapercebido em sua singeleza, se não despertasse o leitor com o vigor das palavras escolhidas:

era dia de S. Cosme
com crianças e cirandas
vestias uma camisola
recendendo a lavanda
foi sonho ou foi delírio
a trepada na varanda?

Em Miss Heartbreak a persona lírica é feminina e o poema desenvolve-se de maneira uniforme e sequenciada: da primeira denti­ção ao primeiro aborto, passando pelas experiências sensoriais mais elementares – a masturbação ao som de Eric Clapton, o primeiro porre, as paixões adolescentes, overdose, ácido, sodomia, cursinho, feminismo – até o fim:

e partiu assim de repente
deixando um vago na gente

O poema "Loba das Estepes" sintetiza o pensamento de Miss Heartbreak:

os homens me temem pelo que represento
subvertendo o jogo secular do jugo
(...)
para que da triste memória
do passado tão recente
se dê à luz uma nova mística feminina
e que eles de repente
percebam
que trinta paus não valem uma vagina

Fecha o volume o maiúsculo Trastes & Contraste, ultrassonografia poética desta cidade maluca:

são tantas cidades em uma só
que só conheço a menor
que só conheço a pior

Ah, querida leitora, prezado leitor. Se tiveste paciência para até aqui acompanhar-me, dir-te-ei o que me moveu a escrever estas parcas laudas: vinte palavras, leitora, vinte palavrinhas, leitor, que me calaram fundo na magrugada em que as li:

Esperamos que Simão Pessoa, porém, evolua sua linguagem poética, para que seu casamento com o sarcasmo não acabe em divórcio.


Cláudio Feldman, ao comentar os Hard Kais no novo livro de Si­mão, Matou Bashô E Foi Ao Cinema, foi o responsável pela minha insô­nia. Ó Simão, além do Bashô, manda o Brinca também pro Cláudio. Eu empresto o meu exemplar. Pra copiar.

A referência cinematográfica do título não é gratuita: underground e escrachado, Simão mata o pai Bashô e, se não reinventa, re­dimensiona o haicai e o poema-escracho, escrachando aquele e sobre­carregando de finíssimo lirismo este, como no metalinguístico "Súbito Aguaceiro":

Libertam-se libélulas
crisálidas de cristal
sob sol insólito

e eu meio bundão
cansado de fazer
tanta aliteração

Observe-se que há dois poemas, imbricados, o segundo comentando o primeiro, subvertendo o rigor métrico ortodoxo, porém conservando uma musicalidade expressiva, como neste "Flores de Cerejeira", onde o caráter oriental da forma é atropelado pela realidade telúrica que cerca a criação poética:

Olho para as flores
Olho e as flores caem
Olho e as flores riem

Brincadeira:
nessa porra de cidade
nem existe cerejeira!

Filiado à milenar tradição do escracho, Bashô traz como apêndice Karalhokê, 40 haicais de fazer corar os catecismos do velho Zéfiro: das manjadissimas Papai e Mamãe e Barba, Cabelo e Bigode até as pós-modernas Nintendo e Realidade Virtual, Simão inventaria as posi­ções do jogo amoroso, com um humor corrosivo, próximo à dor. Um hu­mor que não poupa nem ao poeta nem ao leitor: lírica escrachada. Um conceito que supera, porque contempla, as definições de poesia satí­rica, poesia burlesca, poesia erótica e cognatos, reunindo sob seu manto uma poesia com todas as qualidades técnicas intrínsecas, mas com um motivo patente, desmascarado, que não deixa margem a segundas leituras: escracho. Uma redução do caráter múltiplo da poesia a uma condição linear, prosaica? Absolutamente. A permanência e a univer­salidade do poema-escracho residem exatamente na coragem do poeta de lançar mão, com arte superior, do momentâneo ou do ridículo para eternizar-se.