Amigos do Fingidor

quinta-feira, 7 de março de 2013

A vingança do carapanã atômico


Zemaria Pinto

É uma lei universal consuetudinária: todo texto teatral voltado ao público infantil tem duas finalidade intrínsecas: a primeira, de caráter lúdico, resulta na farra que a garotada apronta ao longo da encenação (e que, normalmente, prossegue no pós-espetáculo); a segunda, tem caráter propedêutico, visando fornecer ao pequeno espectador amostras éticas, separando, de modo claro e indubitável, o bem do mal, o trigo do joio, a macaxeira da mandioca etc.

(Macunaíma, que, mal-educadamente, como todo bom herói tropical, me lê por sobre os ombros, reclama que não está entendendo nada! Consuetudinário? Intrínseco? Lúdico? Propedêutico? Indubitável? Que língua é essa, afinal? Chita, enxerida como sempre, garante que não é inglês. Tento simplificar: embora isso não esteja escrito em lugar nenhum, toda história infantil, ao mesmo tempo em que procura divertir, busca também passar uma lição. Depois de um duplo “ah, bom, tou entendendo...”, os dois saem porta afora, cochichando e rindo. Acho que ouvi algo como “leseira”, mas deixa pra lá... É difícil mesmo escrever para crianças.)

Agora, falando sério. A vingança do carapanã atômico, de Ediney Azancoth, publicado pela primeira vem em 1976, e encenado em diversas ocasiões, mantém-se atual porque traz em sua substância aquelas duas finalidades universais a que nos referimos lá em cima: é, a um só tempo, engraçado e reflexivo. Para efeito didático, poderíamos separar uma coisa e outra. Mas isto é apenas uma orelha e orelhas não precisam parecer mais do que são: orelhas. Por isso, vamos refletir sobre o engraçado.

A floresta invadida por estrangeiros, que querem construir nela uma estrada de ferro, por onde passará o trem azul, é uma ideia engraçada, porque sabemos que esta não é a vocação da nossa floresta, entrecortada de rios navegáveis. A reação dos nativos, liderados pelo “herói” Macunaíma, é pela afirmação da soberania – não são contrários apenas ao trem, não importa sua cor, mas à presença invasiva do estrangeiro. E aqui, mais uma ideia muito engraçada: Chita e Tarzan, heróis dos quadrinhos, representam o suprassumo do imperialismo de exportação; vindos da África, eles deviam entender muito de florestas... Mas não contavam com a nossa astúcia: a floresta tem a protegê-la um Gênio, além da Noite e do... Carapanã, que, tal um D. Quixote dos trópicos, enfrenta qualquer parada.

A reedição deste clássico do nosso teatro deve proporcionar novas encenações, que devem, por sua vez, trazer a reflexão à ordem do dia. Crianças não são os seres alienados a quem se destina boa parte dos espetáculos ditos infantis. Ao contrário, dar às crianças textos do nível de A vingança do carapanã atômico é contribuir para que, num futuro não muito distante, elas exijam e consumam teatro de boa qualidade. E não se limitem apenas à dramaturgia pasteurizada e de gosto duvidoso oferecida, em troca da publicidade massificadora, pela televisão. 
Obs: orelha do livro A vingança do carapanã atômico, de Ediney Azancoth (Manaus: Valer, 2003).