Zemaria Pinto
Os contos
Faremos a seguir breves
comentários sobre cada um dos contos de Tigre
no Espelho. Recomendamos que a leitura desses comentários, aliada a tudo o
que já dissemos antes, seja sucedida pela leitura dos textos de Adrino Aragão,
posto que não pretendemos, de forma alguma, esgotar o assunto. O leitor deve
ter em mente que este resumo é apenas um facilitador, e que nada substitui a
leitura do texto original.
Tigre no espelho – A narrativa que dá título ao livro
mostra-nos o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), um dos escritores
fundamentais deste século, especialista em literatura fantástica. Borges,
acometido de cegueira desde os 55 anos, anda pela casa como se caminhasse por
um labirinto. Na biblioteca, ele encontra-se consigo mesmo, envelhecido. Adrino
Aragão serviu-se de dois contos de Borges para compor o seu. A esse processo,
os especialistas chamam de “intertextualidade” ou cruzamentos de textos. O
primeiro desses textos chama-se “O Outro” e tem rigorosamente o mesmo enredo,
só que invertido: o velho Borges encontra-se com um Borges jovem e cheio de
saúde e os dois entabulam uma conversa na qual não faltam humor e muita poesia.
O segundo texto borgeano no qual Aragão se baseou é “Borges e Eu”, do qual
transcrevemos a primeira frase:
Ao outro, a Borges, é a quem sucedem as coisas.
Compare com uma das falas
do Borges envelhecido. É rigorosamente a mesma, não? Mas Adrino Aragão não é
Jorge Luis Borges e a ótima idéia perde-se num emaranhado de citações, às vezes
gratuitas. Se em Borges o encontro é verossimilhante, em Aragão assume foros de
fantasmagoria, como a espera por De Quincey (escritor morto há 140 anos). Em
Borges nada é facilitado. O fecho de “Borges e Eu” é exemplar:
Não sei qual dos dois escreve esta página.
O Borges de Aragão,
infelizmente, saberia.
A Velha Remington – Jovem e desconhecido escritor
compra uma velha máquina de escrever, marca Remington, de um outro, consagrado,
escritor de contos eróticos e transforma-se, ele também, num sucesso do gênero.
Certa noite, os personagens sobre os quais escrevia, o velho careca e a mulher
de calcinha, tornam-se reais. Pensando estar louco, ele tira um período de
férias, mas, ao retornar, transforma-se em personagem do velho careca, que, por
sua vez, vira escritor.
Este texto, cujo narrador
é onisciente, está entrelaçado com outros do livro. Observe, leitor, que a mulher
de calcinha é a Olga de “Por que não matei Olga?” e o jovem escritor erótico é
o Avelar de “As tias”, que aqui “sonham com aventuras eróticas e orgasmos
impossíveis.”
Uma leitura mais
imediatista afirmaria que houve uma passagem de um estado de sanidade mental à
loucura. Mas o leitor deve evitar essa solução fácil, afinal a literatura é uma
recriação da realidade e não seu mero reflexo.
Você é testemunha,
Ulisses – Escrito
sob a forma de diálogo, porém com um interlocutor que não se manifesta (o gato
Ulisses), este conto é uma reflexão sobre o ofício do escritor. Para manter
acesa a chama, ele acredita que está sempre produzindo uma obra-prima. O escritor
alimenta-se de esperança. A “conversa” com o gato é uma metáfora da condição
solitária do escritor, um criador de mundos que tem na palavra o seu principal
instrumento de trabalho, mas que, se não consegue atingir o público, fica a
falar às paredes. Ou aos gatos.
Chamamos sua atenção para
a semelhança com “O contador de histórias”, sobre o qual falaremos mais adiante.
A situação é a mesma, apenas o enfoque é diferente: escritor apaixonado pelo
seu ofício, jornalista desempregado, abandonado pela mulher.