Amigos do Fingidor

quinta-feira, 21 de março de 2013

Natal: o mito primordial 1/2


 
João Bosco Botelho 

  Cada vez que a roda do tempo – e especialmente a do tempo litúrgico – traz de volta o advento, é sempre oportuno lembrar que essa expressão significa a vinda de Jesus Cristo. É essa vinda que o tempus adventus quer comemorar, ao preparar, durante quatro semanas, a festa do Natal.
(Dom Lucas Moreira Neves)


            A cultura material é, sem dúvida, muito mais transformável do que a mentalidade. Esse pressuposto fica ainda mais claro quando entendemos a estrei­ta dependência entre elas. A primeira, ligada ao conforto (aqui entendido como a fome e a sede saciadas e o abrigo contra as intempéries), tem relação com a natureza, o homem e os produtos. A segunda, muito mais complexa é fruto do intrincado mecanismo neurobiológico, ainda desconhecido, da relação entre o ser e o objeto: o pensamento.

            Após conhecer os fantásticos avanços da engenharia genética, não temos como deixar de considerar a possibilidade de que as ideias, mais antigas e significativas, relacionados com a sobrevivência, localizadas na memória, tenham deixado marcas específicas no genoma (genes controladores da herança genética) durante o processo evolutivo.

            Parece lógico supor que a força do pensamento, reproduzindo ideias muito antigas, mesmo que sob metamorfose, frente à cultura material, reside exatamente na característica de reprodução: transmitida nas gerações seguintes, sofrendo a influência decisiva do sistema sociocultural, de forma semelhante às qualidades físicas.

            Assim poderíamos explicar as agruras do poder político para obter mudança revolucionária nas crenças e ideias religiosas. As tentativas conhecidas foram acompanhadas de instransponível oposição coletiva frente à autoridade.

            O desmoronamento incrivelmente rápido do comunismo no Leste europeu também mostrou de modo insofismável essa assertiva. O arcebispo albanês Simon Jubani, encarcerado durante vinte e dois anos, pelo enfrentamento ao ateísmo de Estado, decretado pelo ditador Enver Hoxha, celebrou a primeira missa, após a morte do ditador, na capela do cemitério da cidade de Shkoder, assistido por mais de cinco mil fiéis (Folha de São Paulo 17. 11. 90). Milhares de albaneses, libertos das amarras implacáveis do patrulhamento ideológico, retornaram aos templos, antes transformados em viveiros de patos e rãs, com a fé renovada e tornada pública pela segurança física.

            Aquele ato de fé também evidenciou que o pensamento coletivo, ao longo da transformação sociocultural, tem mantido acesa a chama dos ritos que celebram os ritmos cíclicos da natureza visível.

            Podemos imaginar o que representou para as pessoas que viveram em regiões com inverno rigoroso, há milhares de anos atrás, o aparecimento do Sol resplandecente para aquecer os corpos e a terra.

            Os acontecimentos seguidos ao sedentarismo dos caçadores‑coletores, no final do Neolítico, estão contidos no mesmo contexto de memorização. O laço anterior com os outros animais foi substituído, pouco a pouco, pela nova intimidade com a terra cultivada. A ocra, pintada nos ossos descarnados, como marca do sangue, símbolo da vida, achada em numerosos esqueletos pré-históricos, foi deslocada pela semente e pelo esperma. A mãe‑terra, sulcada pelo arado e fertilizada pelos raios solares, continua festejada.

            O alimento, indispensável à vida, sempre representou mais do que a coisa material; era a comunhão do homem com essa terra arada, produ­tora do pão, que sacia a fome, e do vinho, fonte dos sonhos acalen­tados.

            As celebrações religiosas, como a missa cristã, milhares de anos depois continuam guardando lugar de destaque para as refeições, onde o pão e o vinho, ambos filhos da mãe‑terra, estão sempre presentes.

            Os incas do altiplano boliviano, sobreviventes de uma das mais brutais conquistas que o mundo conheceu, depois de quase quinhentos anos de humilhações, continuam resistindo e rendendo graças à bondade da Pachamama, a imemorial mãe‑terra da cultura andina.

            Os estudos arqueológicos atestam, com larga margem de segurança, que os símbolos que festejam a terra cultivada, compõem parte da cultura dos povos agrários desde as suas origens.