Francisca de Lourdes Souza Louro
Muitas lembranças são frustrantes e muitas dores desperdiçadas. Algumas são revividas e rapidamente postas de lado, enquanto outras, recebem a permissão de se dilatarem e encherem muitas páginas. Assim é lembrado o Amigo Bacellar se assim o posso considerar. Falar dele fez-me evocar sentimentos ao lembrar a figura miúda em que a velhice o transformou.
De volta ao “muito tempo atrás”, quando se joga a rede no passado, a memória faz uma seleção estreita, arbitrária do que relatar, mas, em se falando de Bacellar, o prazer será invocar, mais que descrever. Tenho em mente que, após certo ponto, quando os esforços de uma pessoa redundaram em uma obra, o escritor experimenta a si mesmo como o Dr. Frankenstein e também como o monstro. Bacellar sabia que o ato de escrever era por a si mesmo em julgamento. Porém, lembrarei o homem, somente.
O primeiro contato com o homem Bacellar foi no Colégio D. Pedro II (Colégio Estadual do Amazonas), ele, professor, eu, aluna, não dele, mas o conheci por causa de um fato inusitado que ocorreu com o mesmo, no Cine Polytheama. Ainda lembro-me do filme e do ator, era o mexicano Cantinflas.
Já com o poeta (ele odiava essa palavra) foi através dos livros em tempos de estudante do curso de Letras na UFAM. Por seus textos logo se vê um escritor com características próprias, de uma verve que deixa os leitores em plena magia e encantamento, pela especialidade e transformação que dá à palavra.
Depois, tive encontros casuais com o já“velho” homem Bacelar, sempre acompanhado de Tainá/Giele e Zemaria Pinto, os escudeiros amigos, inseparáveis, com os quais sempre pôde contar nesta fase da vida. Assim, é mais fácil definir o homem, pois o poeta só o encontro nas páginas dos livros, em poesia. Essa é a magia da existência de todos que nascem humanos e se tornam poetas.
Encontrei Bacellar em diversos momentos bons de sua vida avançada. No Shopping Manauara podia encontrá-lo sempre às tardes, escolhia um livro, sentava em uma das poltronas e lia-o, até terminar (claro, sem pagar). Isso foi ele mesmo quem me confessou, e sugeriu-me a fazer o mesmo. Nessas tardes de leituras, uma paradinha na lanchonete para um chá, isso eu vivi, foi mágico receber o convite e participar daquele momento. No encontro o risinho maroto, pegava a mão e com mesura de Dom Juan, beijava-a, um carinho desnecessário, mas que dava asas à imaginação. Um Lord..
Ter Bacellar num sábado para o almoço, foi a oportunidade que tive de estar mais perto e saborear, não só os sabores do prato servido, bacalhau acompanhado de um bom vinho, isso ele apreciava muito, mas também das conversas, esse era o momento que aproveitava para exibir a cultura, falando em francês, japonês e, se sabia de verdade, isso ele levou. Chegava de bengala, jaqueta e chapéu, mais parecia um Dândi. Fomos ao restaurante Pina, na Joaquim Nabuco, para encontrar os amigos, os encontros com o Zemaria e Tainá/Giele eram para comemorar a amizade, saudar a vida.
Em outras oportunidades, foi na Livraria Valer, pela manhã onde há encontro de intelectuais para lançamentos de obras, e neste, especialmente foi o relançamento de 50 anos do Frauta de Barro, nona edição, onde reuniu pessoas para o congraçamento poético do irônico Bacellar. Intimamente ele era um homem azedo, introspectivo, calado, mas observador, talvez pela vida solitária que levava e assim se tenha transformado, não gostava de adulações, exortava os bajuladores da vida acadêmica. Embora se comportasse com delicadeza, porém, com esses, ficava evidente em suas respostas a fúria contida em si.
Na doença, vi um homem debilitado no corpo, mas também, nunca o vi mais forte, porém era como um Hércules, e sua força era a palavra. No fim, sucumbiu ao sono eterno, a morte da carne, pois o espírito permanece despojado, irreverente como o pomar poético que deixou a todos nós.
Bacellar era avesso às atitudes mesquinhas do ser, mas em ocasiões oportunas pude perceber que não contemplava alguns outros do mesmo ofício, e eu me questionava: despeito? Nunca; Inveja? Jamais. Bacellar não quis ser Estrela, não quis o Céu, mas, talvez esteja lá fazendo graça, e rindo, mesmo com um risinho sinistro, fechando os olhinhos miúdos, para os que ficaram por aqui a querer exaltá-lo.
Não ria de mim, POETA, pois, ao pronunciar-me diante destas lembranças, tive em mente, somente, a satisfação da rememoração afetiva que o convívio contigo me deixou. Ou melhor, ainda me acompanha no prazer de te ler, de ter-te ouvido, olhado, te contemplado em exposições poéticas e, um dia, até me ajoelhado no chão à procura do que dizias ter perdido (um relógio) que não encontrei. Isso foi na morada provisória antes da morte do escritor. Não perdeste nada, ganhaste na memória dos que aqui estão o propósito de ainda permanecer vivo na lembrança, na saudade que os teus poemas nos proporcionam, não só de ti, mas da cidade que neles contém, pois te despojas em mansidão, porém, franco no desejo de proporcionar sabor do grande drama que é ser Poeta. E por ti, para ti, viva o Poeta, ele não morreu.