Amigos do Fingidor

quinta-feira, 28 de março de 2013

Natal: o mito primordial 2/2



João Bosco Botelho

 

            Apesar de as concepções metafóricas do mundo ágrafo em torno do simbolismo da terra cultivada não terem sido formuladas em linguagem teórica, o mito e o rito expressando o elo entre os sistemas de valores foram reproduzidos nos milênios seguintes com poucas mudanças.

            É também por esta razão que as mentalidades refletem, continua­mente, por meio da memória historicamente acumulada, as ações já vividas pelo outro. A vida social é, em grande parte, a repetição dos atos passados, muito em torno dos mitos.

            A concepção mítica da realidade parece ter função ­seme­lhante aos instintos e pode refletir certo arranjo no equilíbrio da comunidade. Dessa forma, o corpo mítico pode ser entendido como uma história de longa duração.

            Desta forma é possível compreender porque a teologia tem na construção teórica certos ritos, mitos e símbolos oriundos de uma origem comum.

            Infelizmente, nos poucos anos em que as pessoas conseguem viver, só muito raramente existe o testemunho da passagem do banal em mito. Adquire reprodução significativa na comunidade onde se desenvolve quando encontra ressonância na utilidade coletiva.  

            Existe na cidade de Newgrange, na Irlanda, um túmulo que serve de orientação climática para os agricultores da região. Na década de 1960, os astrofísicos da Universidade de Dublin comprovaram que o local, construído há mais de cinco mil anos, é o mais antigo ­ali­nhamento astronômico conhecido (Jornal do Brasil, 08. 02. 89).

            Essa sepultura pré‑histórica, construída por um povo agrário desconhecido, contém uma abertura de vinte centímetros, no teto, por onde, no solstício do inverno, a luz natural penetra e chega exatamente onde deveria estar repousando o morto celebrado.

            É particularmente expressiva a festa do nascimento do Sol Invicto (Dies Solis Invicti Natalis), comemorada na Roma, junto à saturnal. Quando o astro parecia se dirigir ao Norte, os trabalhos eram interrompidos, as casas decoradas com árvores, os parentes trocavam presentes e era intensificado o culto ao deus asiático Mitra (Natalis Solis).

             As religiões monoteístas e politeístas mantiveram um ­su­bstrato comum a esse respeito. O vedismo (Bahagavad‑Gita 15, 6) tem ensinamentos equivalentes aos da tradição judaico‑cristã (Is 40, 10‑11 e Jo 21, 15‑17).

            O Cordeiro e o Sol são descritos nos livros sagrados com a clara interdependência das duas fases da humanização. O primeiro, oriundo da primitiva relação do homem com os outros animais, representa a unidade do rebanho domável da divindade dominante; o segundo, herança do sedentarismo, é a condição insubstituível da sobrevivência.

            Existem evidências de que o cristianismo primitivo foi confundido com o culto solar, tanto na elite como no povo iletrado. Os maniqueístas afirmavam que Jesus Cristo era o próprio Sol. Dois dos mais importantes ideólogos cristãos, Cirilo de Jerusalém e Teodo­ro, fizeram a mesma associação.

            Uma das estratégias de conversão está embutida na sedução ­propor­cionada pelo advento, isto é, a chegada da divindade como marco do novo tempo de mudança.

            Os doutores da Igreja Católica, durante vários séculos, fica­ram preocupados com a data do nascimento de Jesus Cristo. Em 194, Clemente de Alexandria propôs o 19 de novembro do ano 3 a.C., enquanto Epifânio lutou pelo dia 30 de maio. Na realidade, não existe qualquer comprovação de que Cristo tenha nascido neste ou naquele dia.

            Dionísio, em 525, encerrou a questão, fixando o advento no dia 25 de dezembro de 754 depois da fundação de Roma (ab urbe condita). A rendição da alta hierarquia romana frente ao simbolismo do solstício do inverno gerou protesto entre os católicos armênios e puritanos ingleses. Ambos afirmaram ser heresia imperdoável associar o culto de Jesus à adoração pagã.

            A querela foi gradativamente vencida porque não existe lugar para a historicidade factual na eclosão do pensamento religioso. A metamorfose dos símbolos, expresso pelo pensamento, amparada pelo processo social fincado nas ideias, assegura a perenidade da crença ao transformar o invisível em visível com nova roupagem.          

Inexoravelmente marcada pelo passado remoto, a humanidade tem encontrado nas relações sociais renovadas o espaço para comemorar o mito primordial – o Natal – oriundo da marca essencial da natureza observável na memória coletiva, como mensa­gem de bem aventurança.

Por outro lado, pouco importam as construções das ideias para melhor entender a fé religiosa por meio dos mecanismos neurobiológicos: Jesus Cristo, o Filho de Deus, está presente no advento do Natal, irradiando bondade entre bilhões de pessoas no planeta.