João Bosco Botelho
Apesar de as concepções metafóricas do mundo ágrafo em
torno do simbolismo da terra cultivada não terem sido formuladas em linguagem
teórica, o mito e o rito expressando o elo entre os sistemas de valores foram
reproduzidos nos milênios seguintes com poucas mudanças.
É também por esta razão que as mentalidades refletem,
continuamente, por meio da memória historicamente acumulada, as ações já
vividas pelo outro. A vida social é, em grande parte, a repetição dos atos
passados, muito em torno dos mitos.
A concepção mítica da realidade parece ter função semelhante
aos instintos e pode refletir certo arranjo no equilíbrio da comunidade. Dessa
forma, o corpo mítico pode ser entendido como uma história de longa duração.
Desta forma é possível compreender porque a teologia tem
na construção teórica certos ritos, mitos e símbolos oriundos de uma origem
comum.
Infelizmente, nos poucos anos em que as pessoas conseguem
viver, só muito raramente existe o testemunho da passagem do banal em mito. Adquire
reprodução significativa na comunidade onde se desenvolve quando encontra
ressonância na utilidade coletiva.
Existe na cidade de Newgrange, na Irlanda, um túmulo que
serve de orientação climática para os agricultores da região. Na década de 1960,
os astrofísicos da Universidade de Dublin comprovaram que o local, construído
há mais de cinco mil anos, é o mais antigo alinhamento astronômico conhecido
(Jornal do Brasil, 08. 02. 89).
Essa sepultura pré‑histórica, construída por um povo
agrário desconhecido, contém uma abertura de vinte centímetros, no teto, por
onde, no solstício do inverno, a luz natural penetra e chega exatamente onde
deveria estar repousando o morto celebrado.
É particularmente expressiva a festa do nascimento do Sol
Invicto (Dies Solis Invicti Natalis),
comemorada na Roma, junto à saturnal. Quando o astro parecia se dirigir ao
Norte, os trabalhos eram interrompidos, as casas decoradas com árvores, os
parentes trocavam presentes e era intensificado o culto ao deus asiático Mitra
(Natalis Solis).
As religiões
monoteístas e politeístas mantiveram um substrato comum a esse respeito. O
vedismo (Bahagavad‑Gita 15, 6) tem ensinamentos equivalentes aos da tradição
judaico‑cristã (Is 40, 10‑11 e Jo 21, 15‑17).
O Cordeiro e o Sol são descritos nos livros sagrados com
a clara interdependência das duas fases da humanização. O primeiro, oriundo da
primitiva relação do homem com os outros animais, representa a unidade do
rebanho domável da divindade dominante; o segundo, herança do sedentarismo, é a
condição insubstituível da sobrevivência.
Existem evidências de que o cristianismo primitivo foi
confundido com o culto solar, tanto na elite como no povo iletrado. Os
maniqueístas afirmavam que Jesus Cristo era o próprio Sol. Dois dos mais
importantes ideólogos cristãos, Cirilo de Jerusalém e Teodoro, fizeram a mesma
associação.
Uma das estratégias de conversão está embutida na sedução
proporcionada pelo advento, isto é, a chegada da divindade como marco do novo
tempo de mudança.
Os doutores da Igreja Católica, durante vários séculos,
ficaram preocupados com a data do nascimento de Jesus Cristo. Em 194, Clemente
de Alexandria propôs o 19 de novembro do ano 3 a.C., enquanto Epifânio lutou
pelo dia 30 de maio. Na realidade, não existe qualquer comprovação de que
Cristo tenha nascido neste ou naquele dia.
Dionísio, em 525, encerrou a questão, fixando o advento
no dia 25 de dezembro de 754 depois da fundação de Roma (ab urbe condita). A rendição da alta hierarquia romana frente ao simbolismo
do solstício do inverno gerou protesto entre os católicos armênios e puritanos
ingleses. Ambos afirmaram ser heresia imperdoável associar o culto de Jesus à
adoração pagã.
A querela foi gradativamente vencida porque não existe
lugar para a historicidade factual na eclosão do pensamento religioso. A
metamorfose dos símbolos, expresso pelo pensamento, amparada pelo processo
social fincado nas ideias, assegura a perenidade da crença ao transformar o
invisível em visível com nova roupagem.
Inexoravelmente
marcada pelo passado remoto, a humanidade tem encontrado nas relações sociais
renovadas o espaço para comemorar o mito primordial – o Natal – oriundo da
marca essencial da natureza observável na memória coletiva, como mensagem de
bem aventurança.
Por outro
lado, pouco importam as construções das ideias para melhor entender a fé
religiosa por meio dos mecanismos neurobiológicos: Jesus Cristo, o Filho de
Deus, está presente no advento do Natal, irradiando bondade entre bilhões de
pessoas no planeta.