Amigos do Fingidor

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Lábios que beijei 52


Zemaria Pinto

Cyra


Cyra procurou-me no banco: queria investir o dinheiro que o marido deixara como herança  além de imóveis e pontos comerciais, inclusive em outras cidades. Da ascendência indígena e portuguesa, prevaleceu em Cyra o sangue nativo – miúda, entroncada e serelepe, os traços finos na pele escura, lembrando a urna selvagem de um cupuaçu. Aos 28 anos, sem filhos, bela e rica, Cyra era a vítima ideal para o que se chamava à época de “golpe do baú”. A relação profissional evoluiu para a amizade, esbarrando porém, no luto, que já se estendia por 8 meses. O negro permanente num guarda-roupa da moda dava-lhe um ar consternado, logo dissipado pelo expansivo sorriso. Aos 10 meses de viuvez, e depois de raras sessões de bolinagem em locais impróprios, Cyra chamou-me para um jantar em sua casa, avisando-me que ia convidar alguns amigos. Parecia o fim do período lutuoso. Dia e hora marcados, compareci à casa grande e elegante, incrustrada em um bairro antigo. Estranhei o pouco movimento – apenas cinco ou seis carros. Depois de uma recepção efusiva, Cyra apresentou-me aos cavalheiros presentes. Sim, não havia mulheres. Notei que todos, sem exceção, faziam-lhe a corte. Após o jantar, com o nível do bom vinho já bastante alto, um sujeito que se autoproclamou poeta pediu a palavra, e após um nojento pigarro rimou amor com flor, sol com arrebol, cunhã com manhã etc. Um outro, causídico e vereador, vomitou adjetivos sobre a anfitriã. Mais alguns discursos insossos e inodoros e a própria dona da casa tratou de mandar-nos embora, afinal, não ficava bem a uma viúva estender-se até altas horas em conversas mundanas, ainda que com aquela plêiade de gentis-homens – a expressão usada foi exatamente essa. Aquele jantar fazia parte de um plano de seleção, onde um simples gerente de banco não teria a mínima chance. Soube de outros jantares, nos mesmos moldes, com outros candidatos. De qualquer forma, quando acabou o luto, consegui arrancar de Cyra alguns encontros fortuitos e apressados. Depois de um período sumida, chegou-me a notícia: Cyra casara-se em Boa Vista, com um rico e diversificado empresário, que ensaiava entrar para a política do território. Ao final das contas, ela, sim, conseguira dar o golpe do baú.