Amigos do Fingidor

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mundo de vidraças



Paulo Sérgio Medeiros

Na noite em que pingos de espírito natalino encharcam corações de altruísmo, Floriano com seus cabelos pretos e bigode alvo mergulha no fundo da solidão. Criado pela madrinha, cujo senso de família ficou arraigado em tenra idade, ele era o próprio compêndio de uma aridez emocional. Teve a chance de pontilhar as letras castrada pela dura cartilha de uma criança que tinha o pedido de benção guardado no bolso do abandono desde os primeiros cueiros. Logo amadureceu e a perene ojeriza pelas relações familiares era o cume de um legado degenerativo. Experiente, aos dezenove anos ganhava pouco dinheiro com muito trabalho para a madrinha – pois, ele não via um único centavo do salário – singrando as águas do Solimões e as do Negro como ajudante de bordo do motor de linha Seledom. Carregar fardos de feijão, farinha, engradados de cerveja era bem mais leve que o fardo do desamparo. A ausência da figura paterna pesava como uma cruz em cada braço. Seu Luís, proprietário do Seledom, tentava em vão assumir o papel de educador com receio de vê-lo totalmente perdido. Num recreio carnavalesco, lá pelos rincões do Careiro da Várzea, Floriano encontra o fim dos dias solitários nos olhos de Graça. Foi amor à primeira vista. Aquela carioca de cabelos na altura dos ombros e olhos arredondados lhe caiu como uma tábua de salvação. E incentivado por ela e corroborado pelos conselhos de seu Luís largou a vida de marítimo para trabalhar por conta própria e logo a prosperidade bateu-lhe à porta e o matrimônio pousou-lhe sobre os ombros oito meses depois de muitos encontros às escondidas. A união foi o visto para a liberdade. O casulo matrimonial de muitos é a carta de alforria de outros. Já no primeiro Natal, o primeiro em família com direito a ceia e estouro de champanhe, deixou a esposa em casa com a desculpa de ir ao açougue apanhar sua capanga com a renda do dia e viu o romper da aurora no puteiro Maria das Patas. O sereno boêmio da Manaus dos anos setenta lhe caíra como um véu. O brilho da primeira estrela no céu era o convite da metáfora do prazer àquele notívago outrora reprimido. As noites no Maria das Patas – reduto dos açougueiros e taxistas – roubaram aquele homem renegado pelo pai dos braços daquela que seria capaz de cortar os pulsos por ele. Todas as noites Graça esquentava a janta, arrumava a mesa e apostava que com a chegada da primeira filha a gandaia juvenil se esvairia. Mero engano, com as rugas marcando a passagem do tempo em sua face, Graça, doméstica não letrada, resolutamente embrulhara a esperança num papel de conformismo. Os filhos foram nascendo um atrás do outro, todavia o sangue farrista do pai ausente lavava as veias de Floriano não o permitindo largar o osso da velhacaria. A leviandade o prendia naquele mundo sujo. Com o aumento da prole e a concorrência de algumas amantes disfarçadas de sobrinhas da madrinha, os negócios empacaram. Por conta da escassez do dinheiro, o ritmo frenético de suas farras e a presença constante dos amigos foi se desvanecendo. Os arranca-rabos se hospedaram na casa metade de madeira, metade de alvenaria. A casa era a própria síntese do casal. Sem mais as porções de ilusões proporcionadas pelos rabos de saia Floriano queria, em plena véspera de Natal, encontrar o pai como se sua benção o libertasse da solidão...