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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Os deuses gregos e a serpente na medicina



João Bosco Botelho

É necessário tentar explicar porque o Centauro Quíron foi o preceptor de Asclépio, o grande deus curador grego, de Jason e Dionísio. É provável que tenha existido razão no pensamento mítico grego para justificar a ligação entre as qualidades necessárias para exercer a prática médica, encontradas em Asclépio, com a epopeia épica do Velo de Ouro, de Jason, e com o conhecimento dos mistérios da religião e da vegetação de Dionísio.
Apesar de tratarem-se de pontos aparentemente discrepantes e sem qualquer relação entre eles, é possível estabelecer o elo coerente a partir da compreensão de como era a prática médica naquela época. O entendimento fica mais fácil se aderirmos a medicina aos dois cortes epistemológicos: o pensamento celular, a micrologia (microscópio ótico), e o pensamento molecular, a ultramicroscopia (microscópio eletrônico). Dessa forma, sem esses conhecimentos, a ação médica atual ficaria desprovida dos principais suportes para identificar as doenças e os objetivos da prática ficariam intransponíveis.
Para o exercício da prática médica sem o apoio da micrologia (biopsia) e da genética torna-se necessário possuir a determinação de Jason em vencer incríveis obstáculos e o conhecimento da vegetação e da religião de Dionísio. Talvez tenham sido essas as bases complexas das relações do centauro Quíron, com Asclépio, Jason e Dionísio.
Para os gregos daquela época o deus Asclépio deificava a medicina na mitologia: era celebrado em grandes festas públicas, no dia 18 de outubro, data que o cristianismo estabeleceu como o dia do nascimento de Lucas, o Evangelista médico, e, até hoje, se comemora o dia do médico no Ocidente.
Asclépio conquistou uma fama inimaginável, tinha a delicadeza do tocador de harpa e a habilidade agressiva do cirurgião. Todos os doentes que não obtinham cura em outros lugares, procuravam os serviços médicos desse deus. Mais cirurgião do que médico, ele criou as tiras, as ligaduras e as tentas para drenar as feridas. Chegou a ressuscitar os mortos e, imediatamente, foi morto por Zeus, com os raios dos Ciclopes. Zeus matou Asclépio por temer que a ordem do mundo fosse transtornada.
Asclépio deixou duas filhas, Hígia e Panaceia; a primeira celebrada como a deusa da medicina, e a segunda curava todos os doentes com os segredos das plantas medicinais. Além delas, teve dois filhos, Macaão e Podalírio, médicos guerreiros, que se destacaram na guerra de Tróia.
Existem muitas comprovações arqueológicas das dádivas de agradecimentos dos doentes à Asclépio. No hospital de Epidauro, na ilha de Cós, na Grécia, foram encontradas várias esculturas com o nome do doente, a descrição da doença e da cura obtida. Esses objetos artísticos simbolizando Asclépio, datados entre os séculos 6 e 2 a.C., contém a serpente enrolada no bastão.
A relação entre a serpente e a medicina já estava presente na civilização babilônica, dez séculos antes da formação da polis grega. No Louvre, existe um vaso de cerâmica encontrado na região de Lagash, representando o deus da cura babilônico – Ningishzida – segurando um bastão com duas serpentes entrelaçadas.
É possível compreender a relação da medicina com a serpente sob dois aspectos míticos: pode viver em cima e embaixo da terra e tem a capacidade de mudar a pele, de tempos em tempos, encenando o renascimento. 
A última interpretação está relatada no Rig Veda (1.79,1), no qual os Adityas são descritos como os descendentes das serpentes e ao perderem a pele velha, eles venceram a morte e adquiriram a imortalidade.