João
Bosco Botelho
O processo que culminou com a Medicina como especialidade
social, com avanços e recuos, tem proporcionado:
– Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica
das formas e funções do corpo;
– Estabelecer os parâmetros do normal e da doença;
– Vencer as limitações impostas pelo determinismo
da dor e da morte.
Esses saberes históricos facilitam o entendimento da função
do médico como um dos especialistas sociais que trabalham para evitar a dor e
empurrar os limites da morte, tanto no passado quanto na sociedade
contemporânea.
Sob esse enfoque – a Medicina como especialidade social –
não há como dissociar o presente do passado distante.
É possível que as comunidades ágrafas tivessem na busca da
sobrevivência cotidiana e na observação das mudanças, em torno da natureza
circundante e do corpo, grande parte da sua atenção. As relações entre vida-morte
e saúde-doença deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança
pessoal e coletiva. Esse conjunto pode ter provocado a especialização de alguns
dos seus membros – curador ancestral – que se interessaram por controlar as
situações de risco à segurança e a vida.
Nesta fase, quando o nosso ancestral começou a apreender e
tentar modificar o processo natural dos binômios vida-morte e saúde-doença,
estava iniciado o extraordinário processo humano com o objetivo de diminuir a
abstração e aumentar a materialidade dos acontecimentos e ações que pudessem
evitar a dor e empurrar os limites da vida.
Essas pessoas diferenciadas fizeram-se curadores. Foi nesse
contexto, no qual alguém passou a cuidar do outro, ferido impossibilitado da
locomoção ou da própria proteção, que os elos de confiança entre o curador e o
doente iniciaram a arqueologia da Medicina como especialidade social.
Os mais antigos registros paleopatológicos indicativos da existência
das práticas de curas na pré-histórica surgiram em comunidades ágrafas, alguns
milhares de anos antes dos documentos escritos na Mesopotâmia.
Os indicativos evidenciam que o processo biológico de
desenvolvimento e adaptação ao meio ambiente dos nossos ancestrais está voltado
à fuga da dor. A documentação fóssil existente da primeira ação médica
conhecida, no homem pré-histórico, data de 45.000 anos, no Pleistoceno
Superior. Trata-se do esqueleto de um Neandertal, descoberto no monte Zagros,
no Iraque, com traços de amputação intencional, no braço direito, com a marca
indiscutível de o osso ter sido seccionado com a ajuda de objeto cortante.
Existem outras ações curadoras bem documentadas, como a
encontrada no osso rádio de alguém que viveu em torno de 25.000 anos, com sinal
de fratura traumática consolidada após ter sido colocada no lugar certo, dessa
forma demonstrando que foi ajudado por outro membro do grupo social.
As práticas de curas têm acompanhado o homem na conquista
planetária – para o bem e para o mal.