João Bosco Botelho
A Bíblia, mesmo contendo inúmeras referências específicas
sobre a organização familiar, não cita uma só vez a prática abortiva. É como se
o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse importância social.
A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué,
manual ético moral, escrito nos anos 100: "Não matarás criança por aborto,
nem criança já nascida". Essas regras influenciaram o filósofo cristão
Tertuliano (190 197). Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica,
aceita em muitas comunidades do mundo greco-romano, e adotou a posição
antiabortiva absoluta: "É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer.
Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou que se faça desaparecer
aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá".
Apesar de o Concílio de Elvira (305) ter ameaçado de
excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou
muitos intelectuais do século 4. Como não existem registros refutando ou
punindo o aborto, é provável que mesmo com o freio conciliar, predominou a
tradição permissiva do aborto.
São Jerônimo (331-420), um dos quatro grandes doutores da
Igreja, em correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “... não se
pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência
e seus membros". Em outra carta, o
monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com
o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos
filhos.
Grande parte da proposta teológica da Igreja em torno do
aborto provocado está contida nas publicações de Santo Agostinho, escritas no
final do século 4. Santo Agostinho, o genial teórico do cristianismo, argumenta
que todos os seres humanos nascem em pecado por serem concebidos em pecado,
porque o primeiro homem, Adão, pecou. Essa fantástica articulação teórica – a
doutrina do pecado original – foi consagrada como doutrina oficial da Igreja
Católica. É muito sugestivo que a doutrina agostiniana está, intimamente,
associada à sexualidade proibida. Esse notável intelectual dos primeiros anos
do cristianismo foi bastante competente para convencer outros fiscais da
sexualidade, no milênio seguinte: “Estou convencido de que nada afasta mais o
espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos
do corpo sem os quais um homem não pode possuir sua esposa.”
Nesse conjunto de cristianização, surgiram as festas saudando
a vida concebida pela vontade de Deus. A da Natividade do Senhor foi uma das
primeiras, fixada no fim do século 4, iniciando os atributos de sacralidade das
concepções. Sem que possamos precisar a temporalidade, foi seguida da
natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, no
século 6, e da Anunciação, ou "festa da concepção de Cristo", no
século 7. Essas celebrações cristãs iniciaram o sólido processo substitutivo
das festas com significados semelhantes, oriundas da tradição politeísta,
impondo a simbologia sagrada à gestação.