Amigos do Fingidor

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Aborto como método anticoncepcional: tragédia social dos pobres 2/3


João Bosco Botelho


A Bíblia, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não cita uma só vez a prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse importância social.
A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético moral, escrito nos anos 100: "Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida". Essas regras influenciaram o filósofo cristão Tertuliano (190 197). Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica, aceita em muitas comunidades do mundo greco-romano, e adotou a posição antiabortiva absoluta: "É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá".
Apesar de o Concílio de Elvira (305) ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou muitos intelectuais do século 4. Como não existem registros refutando ou punindo o aborto, é provável que mesmo com o freio conciliar, predominou a tradição permissiva do aborto.
São Jerônimo (331-420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, em correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “... não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros".  Em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.
Grande parte da proposta teológica da Igreja em torno do aborto provocado está contida nas publicações de Santo Agostinho, escritas no final do século 4. Santo Agostinho, o genial teórico do cristianismo, argumenta que todos os seres humanos nascem em pecado por serem concebidos em pecado, porque o primeiro homem, Adão, pecou. Essa fantástica articulação teórica – a doutrina do pecado original – foi consagrada como doutrina oficial da Igreja Católica. É muito sugestivo que a doutrina agostiniana está, intimamente, associada à sexualidade proibida. Esse notável intelectual dos primeiros anos do cristianismo foi bastante competente para convencer outros fiscais da sexualidade, no milênio seguinte: “Estou convencido de que nada afasta mais o espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos do corpo sem os quais um homem não pode possuir sua esposa.”
Nesse conjunto de cristianização, surgiram as festas saudando a vida concebida pela vontade de Deus. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século 4, iniciando os atributos de sacralidade das concepções. Sem que possamos precisar a temporalidade, foi seguida da natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, no século 6, e da Anunciação, ou "festa da concepção de Cristo", no século 7. Essas celebrações cristãs iniciaram o sólido processo substitutivo das festas com significados semelhantes, oriundas da tradição politeísta, impondo a simbologia sagrada à gestação.