Amigos do Fingidor

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Doença além do social



João Bosco Botelho


A teoria dos Quatro Humores, construída no século 4 a.C. por Políbio, médico da Escola de Cós e genro de Hipócrates, e a proposição de Galeno, do século 2 d.C., associando o perfil social como fator nato ao aparecimento das doenças – teoria dos Quatro Temperamentos – se tornaram dogmas nos estudos das práticas médicas, no medievo europeu, influenciado pelo fato de Galeno ter se declarado cristão, ampliou a busca dos limites da cura além do social até os dias atuais.
A inovação de Galeno não modificou a essência da prática médica da Escola de Cós, liderada por Hipócrates: o exame do doente por meio da anamnese, descrita em homenagem à deusa grega da recordação, Mnemis. Assim, o médico próximo do doente o interrogava na busca dos fatores pessoais, familiares e sociais que poderiam estar relacionados com as doenças.
Com absoluto predomínio das teorias hipocrático-galênicas a medicina atravessou o medievo europeu. A pouca resistência se adaptou às intolerâncias e assim chegou às primeiras universidades, sob forte influência da Igreja.
No período mais tenebroso da Inquisição, entre os séculos 14 e 15, alguns médicos, sob interpretações equivocadas das teorias de Políbio e Galeno, construíram exames clínicos para identificar as bruxas, em pouco tempo abandonados no lixo da intolerância.
No século 18, o avanço seguinte com o suporte da micrologia, genialmente descrita no século anterior por Marcelo Malpighi, na medida no aperfeiçoamento do pensamento micrológico celular, obrigou a revisão da ordem greco-romana de Políbio e Galeno.
A medicina oficial, a produzida nas universidades, continuou transmitindo, como verdade final, a morfologia das doenças, sob as lentes dos microscópios, desprezando como e por que as pessoas se relacionam com as dores e os prazeres.
Apesar da associação saúde-sociedade não ser recente na história da medicina, nunca se tornou tão obrigatória nos trabalhos acadêmicos, quanto nos últimos cinquenta anos. Notadamente nos países do Terceiro Mundo, onde a exclusão social é mais gritante, escrever ou orientar teses médicas desprovida do suporte metodológico em torno da doença como fruto do social acabou sendo proibido.
É nessa perspectiva que ocorreram novas intolerâncias: admitir como pressuposto indissociável que a doença só depende da ordem social, remete o raciocínio, de maneira obrigatória, à falsa premissa da ausência de vetores pessoais que interferem com a etiologia das doenças. A herança genética que molda os corpos dos animais multicelulares foi estruturada, em milhões de anos, para fugir das dores de todos os tipos, física e mental, e buscar o prazer como resposta inata contra o sofrimento. As vidas são impossíveis sem a distensão entre a dor e o prazer, amalgamando o pessoal ao social e vice-versa.