Amigos do Fingidor

sábado, 17 de abril de 2021

Clarice e eu

 Tainá Vieira

 

Clarice e eu é o nome desta crônica porque se trata de um texto bem intimista, na verdade, nem era para ser compartilhado, mas preciso mostrar o quanto tempo eu perdi, menosprezando uma autora que mudaria a minha medíocre existência.  Sei, estou agindo como uma colegial, porém, eu não me importo. Clarice exerce um poder intenso sobre mim, a forma complexa e sutil de narrar, me motiva, influencia e inspira muito.

Quando eu estava no curso de Letras – Língua Portuguesa, e mesmo antes do curso, eu lia muito, sempre digo que a minha jornada na literatura se deu primeiro com a leitura, isso é óbvio, não poderia ter sido diferente. Todavia, jamais me interessei pela literatura de Clarice, por dois motivos: o primeiro era porque sempre ouvira falar que a sua escrita era difícil de entender, muito complexa e cansativa, e o segundo motivo, era por pura preguiça de me esforçar para entender.

Eu queria algo mais leve e fácil, eu queria mesmo era sombra e água fresca, nada de olhar para as profundezas das emoções das personagens, como no romance de estreia de Clarice, Perto do Coração Selvagem. Esse romance mudou a minha vida de verdade, e isso não é um clichê. Vira e mexe, estou pensando em Joana, ó minha triste e doce Joana, quão feliz eu fui adentrando a tua infeliz história. Por várias vezes, vi-me ali, por muitos instantes tu, Joana, eras eu, vivi contigo muitas agruras e tive também quase os mesmos pensamentos teus.

Formei-me, especializei-me, o tempo passou e Clarice sempre ficou para trás na minha vida. Sentia uma raiva tão intensa quando alguém perguntava sobre algum livro de Clarice, e eu respondia que não conhecia e a pessoa se assustava, como assim não conhece nada de Clarice? Eu, retrucava, quem é Clarice na fila do pão? É mesmo essencial ler Clarice?

Comecei lendo as suas crônicas, uma coletânea, Todas as crônicas, são mais de 600. O destino armou direitinho essa cilada boa, me pegou com as crônicas, e eu conheci uma autora totalmente oposta daquela que ouvira falar, e senti um ódio tão grande de mim por me deixar levar “no ouvir dizer.”  As crônicas de Clarice são inspiradoras, nota-se a paixão pela escrita, pela Língua Portuguesa, e pelo país que ela tanto amou. Em seguida fui para os romances, me esforcei muito para gostar da Macabéa (já havia lido na época da faculdade, mas foi por obrigação), prefiro a Joana, contudo, a minha favorita é G.H. G.H fala aos meus ouvidos, na verdade, estou ali naquele quartinho acompanhando cada cena que sua mente produz.  Vivo aquela condição humana tão banal e tão necessária, e deixo-me levar por aquele turbilhão de emoção que percorre a narrativa.

Quando estou com tempo sobrando, assisto à entrevista de Clarice concedida quase um ano antes de ela morrer.  Já fiz isso várias vezes e mais vezes farei. Tenho um álbum na minha galeria de fotos só dela. Quando penso em Clarice, lembro também de uma professora da época da faculdade que faleceu um dia destes: ela amava e nos falava com paixão da obra de Clarice e dizia-me que eu precisava ler Clarice, que Clarice era fundamental. A minha professora estava coberta de razão.

Passei pelas crônicas e por alguns romances e estou finalizando os contos, os contos que, quanto mais complexos, melhores são. E eu tenho certeza, jamais encerrarei as leituras, Clarice sempre estará ao meu alcance, tanto que A paixão Segundo G.H, me chama. Nunca vi isso, um livro chamar por mim.

Antes de ler integralmente A Paixão segundo G.H, eu já havia iniciado umas duas vezes, e parava, não porque não entendia, mas sempre acontecia algo que fazia com que eu deixasse a leitura de lado, só que um belo dia, eu decidi, vou terminar esse livro, recomecei, e em dois dias, eu estava triste porque havia terminado: eu queria mais, queria que a leitura durasse mil e uma noites. Algo estranhamente tem acontecido, sinto uma necessidade de relê-lo.  Estou quieta, e subitamente vem uma vontade de começar a ler tudo de novo, é como se esse livro chamasse por mim.

Essa é a literatura de Clarice, poderosa, inspirável, avassaladora e dominante; quem a conhece, a compreende, não escapa mais e fica literalmente à mercê, como se, dela, o leitor necessitasse para sobreviver. A obra de Clarice é o melhor enigma para que se possa desvendar (ou tentar) antes de começar a escrever. Clarice é essencial, sim.