Marco Aurélio de Souza
O DIA EM QUE CARLA ASSASSINOU O MEU
GATO E OUTRAS CRISES DE AMOR – ROJEFFERSON MORAES
1. Após uma sequência de três livros
de poemas editados de maneira independente, Rojefferson Moraes fez sua estreia
editorial com este O dia em que Carla assassinou o meu gato e outras crises
de amor, publicado pela Penalux, em 2017. O título é bastante autoexplicativo:
na maior parte de seus poemas, nos vemos defronte a flertes impensados,
casamentos que começam e terminam como um relâmpago, crises de relacionamento e
ilusões amorosas que se aproximam perigosamente dos destinos trágicos.
2. A poesia do escritor amazonense
não nutre procedimentos esteticistas e nem se utiliza de vocábulos sem antes
testá-los na prova real da fala cotidiana. Bruta como um divórcio conflituoso,
áspera como uma transação entre sobreviventes, sua poética está colada irremediavelmente
ao bafo das ruas, ao asfalto quente das periferias manauaras.
3. Coeso nas questões formais e
temáticas, o volume é dividido em três partes: a primeira, mais longa, traz uma
série de poemas associados à expressão de um enigma; na segunda, somos apresentados
à personagem que habita o título do livro, Carla, que protagoniza uma espécie
de novela poética; a terceira parte, por fim, traz poemas avulsos focados em
relacionamentos amorosos. Uma vez que, diferente da primeira, as seções finais
da obra nunca se distanciam da ideia contida no título (a das crises de amor),
parece-me que o autor poderia ter desdobrado este livro em dois, guardando os
poemas que fogem à sua temática principal para um volume à parte.
4. Na primeira seção do livro, tal como
as personagens criadas por Rojefferson, suas micronarrativas parecem sofrer o
tempo todo de uma ansiedade paralisante, angústia da mesma natureza que aquela
experimentada pelo malandro que decide mudar de vida, alcançando seu objetivo
pelo período estreito de dois dias e meio.
5. E porque seus protagonistas
parecem estar sempre preparando terreno para uma mudança íntima que logo se
mostra ilusória, os próprios poemas do livro parecem se render a um efeito de
atrofia, perdendo suas possibilidades heroicas mediante um mergulho afoito nas
mais diversas interdições existenciais que caracterizam a vivência periférica.
6. Em diversos poemas, o processo de
quebra de expectativas se constrói por meio da aceitação da vida ordinária, das
obviedades e de como as coisas realmente são. Enquanto o leitor espera o
consolo de uma reviravolta, de uma luminosidade algo divina capaz de provocar
um desvio na trajetória das personagens, o desfecho típico de suas crônicas
poéticas derruba, como um terremoto impiedoso, até mesmo o que a custo ainda
estava em pé.
7. Assim, por exemplo, ao narrar o
despertar de um bêbado no asfalto, vítima de ultrajes e humilhações, o poema
torce as eventuais expectativas de transformação com o desfecho mais
previsível: o homem sente o desprezo do mundo e, com sua garrafa de “verdades
que ninguém vê/toma, cospe, manda todos pro inferno/depois levanta,
cambaleante” (O enigma do sono – I). Aqui, não há qualquer redenção possível,
somente a vida com seus ciclos infinitos de miséria e dor.
8. Manaus, explosão urbana incrustada
no coração da selva, é a paisagem degradada dos poemas enfeixados neste livro.
Não espere, porém, o índio idílico, o pescador bucólico ou o caboclo amante da
natureza: a capital amazonense aparece em sua faceta mais realista e brutal,
cortada por igarapés contaminados e povoada por todo tipo de miseráveis e
marginais. E por se erguer sobre uma geografia poética, é certo que a
experiência de seus poemas será algo diferente para aquele que conhece a cidade
por trás da poesia, sendo por isso capaz de vislumbrar mais facilmente a força
de um punk sujo assobiado pela Eduardo Ribeiro, entre outras
imagens/referências à urbe manauara.
9. Provando a força que a cidade
possui em sua poesia, mesmo quando seu lado lírico e romântico parece predominante,
Manaus continua no horizonte dos poemas, surgindo de suas frestas qual uma
ameaça, a exemplo do que ocorre no poema “O enigma da inocência” (ver no
primeiro comentário), que expõe a vulnerabilidade da vida na metrópole mediante
um contraste quase irônico com a inocência da infância.
10. Como se vê, portanto, o valor da
literatura de Rojefferson não se encontra em achados formais, mas sim na
sensibilidade cultivada pelo autor em meio aos corres do cotidiano, na visão de
quem sabe bem como é estar sempre à mercê de decisões e acontecimentos que
escapam à esfera íntima da consciência – os imperativos do Estado, do marido,
da sorte, da boa vontade alheia e das instituições –, por isso compreende a
explosão que muitas vezes advém como perigosa consequência de um desejo natural
pela dignidade e pelo poder.