Dílson Lages Monteiro(*)
Analisando a literatura
para a infância no século XIX, diz Teresa Colomer (2017: 143-144) que os contos
populares sempre desfrutaram da preferência infantil, priorizando a fantasia e
o prazer narrativo. Assim é que contos de feição popular e oral se deixaram
absorver e permanecem até hoje como referência social, colocando o viés
moralizante como natureza secundária, para favorecer a fabulação. Chapeuzinho
Vermelho e inúmeras obras, por exemplo, permanecem perenes, mas a elas, em
recontos ou na incorporação delas por outras narrativas, foram acrescidos
diálogos com novas manifestações da linguagem: novos gêneros, novos valores,
novas formas de narrar.
Em “A cidade perdida dos
meninos-peixes”, embora a obra seja lida como novela, Zemaria Pinto evidencia
as constatações de Colomer, ao ressignificar a tradição oral como ponto de partida
para sua escritura, que carrega a marca da imaginação a partir do realismo
mágico. Lendas do Norte brasileiro, tão conhecidas país afora, servem para a
surpresa e para a fantasia de significados novos. Quem já não ouviu, entre nós,
a lenda do Boto? Essa lenda e outros relatos, como a universal lenda de
Atlântida, aludida, inclusive diretamente no texto, criam uma narrativa que
concilia a aventura e o fantástico, para o maravilhoso sobrepor-se.
Assim é que os primeiros
capítulos da obra, de fundo metalinguístico, são uma anunciação do lugar das
histórias oriundas da oralidade e um convite (se não uma antecipação do núcleo
dramático), para se descobrir o que torna o homem verdadeiramente humano (qual
vida estaria conotativamente submersa?). Um convite para a valorização da
própria tradição de contar, representada pela Mãe Velha, chefe de um conselho
de seres sábios, como descobrirá o leitor, e especialmente, uma alegoria para o
tempo, uma negação da morte, ainda que possa ser lida como a força viva da lembrança
e da saudade.
“(...) Mãe velha tinha a cara do tempo (...) É verdade (...)
Um dia (...) fora vista pela última vez a beira do rio de sua cidade (...)
seguindo um bando de botos (...) exibia um sorriso de felicidade nos lábios”
(PINTO: 2020, 10).
O próprio narrador é quem
anuncia, no capítulo 2, que a matriz de sua história é a oralidade (“Vou contar
a história...”), estabelecendo a transição entre a autoexplicação e a narrativa
propriamente dita por uma espécie de saudação, ao mesmo tempo, a reverência ao
valor sagrado de toda a sabedoria simbolizada na Mãe Velha. “A bênção, Mãe
Velha” é não somente um aviso de que a história vai começar para valer, mas
também, como concluirá o leitor, a anunciação de que há valores universais
sagrados a permanecerem entre nós como condição para a convivência harmônica e
feliz.
Ilustrações e capa de Leyla Leong. |
Ao criar um mundo
sobre-humano, mas não apartado do mundo real, o narrador vale-se da
narrativa de aventuras. Sílvia Adela Kohan (2013:28) lembra que, entre os
aspectos composicionais de textos com essa configuração, encontram-se o
interesse por viagens, a entrada em um mundo desconhecido, marcado pela ameaça
de perigos inesperados. Exatamente o que se observa em “A cidade perdida dos
meninos-peixes”: o aparecimento de um ser estranho vindo de outro mundo
ameaçador e parcialmente desconhecido, como também misterioso, o novo mundo em
que aparece o Menino-terra depois de afogar-se. Além disso, o perigo de um
mundo violento externo à realidade do povo-água e a possibilidade concreta de
um grupo de meninos desse mundo ter de enfrentar a violência assinalam
claramente a presença da aventura.
O conflito entre o
primitivo e o civilizado determina, com relevo, as escolhas temáticas. Na
oposição entre o povo-água e o povo-terra, lê-se ironicamente, pela contradição
dos valores do consumo, o retorno a um mundo natural. Nele, importa o
essencial. Nele, importa, por exemplo, principalmente, a família, focalizada
para a ativação de conhecimentos relacionados às relações humanas, com relevo
ao lugar do afeto. Todo o texto é construído para se sentir saudades de casa. O
próprio Menino-terra, que tem os valores transformados pela convivência com um
mundo organizado para a fraternidade, reconhece, ao final da obra, a unidade
familiar como o amparo, fonte da ternura e uma das motivações para o existir.
Lê-se de igual modo a forte presença da crítica social. A narrativa, centrada no súbito aparecimento de um Menino-terra na cidade submersa dos meninos-água, vai-se organizando, em geral de maneira indireta, sobretudo nos diálogos, para criticar as variadas formas de violência. Crítica vista, por exemplo, em diálogo entre o casal Ramai e Ieso, pais das crianças protagonistas Loma e Aman, em apologia ao vegetarianismo. Diz Ramai para Ieso:
“– Aos poucos, ele começa a se lembrar da sua vida na terra.
Imagine que hoje, no almoço, ele reclamou da minha comida. Disse que estava
fria e que não aguentava mais comer folhas e raízes...
– O organismo dele deve estar sentindo falta de carne. Você
sabe que na terra eles criam os animais em casa, para depois matá-los e
comê-los?... – São uns selvagens. E eu temo que ele fique assim também...”
(PINTO: 2020, 23).
A crítica social
enfatiza-se, sobremodo, na negação do sentido impresso nas diversas maneiras de
brincar do Menino-terra. A brincadeira significa para ele um modo de
exercer liderança e de manipular. Um modo de corromper e de ameaçar. Um modo de
legitimar poder, autoritarismo, injustiça e desigualdade. Diante disso, o
povo-água reage com perplexidade, melancolia e espanto. Porém, com esperança na
força transformadora da espiritualidade, que leva, mesmo o Menino-Terra, a
compreender:
“(...) eu percebi que além de carinho e compreensão vocês têm
uma outra coisa que eu não sei explicar... As pessoas se ajudam umas às
outras... Elas não se atropelam, nem mesmo tentam ultrapassar quem está na
frente... Sabe, Mãe Velha, logo que eu cheguei aqui, eu achava tudo muito
lento, mas agora eu compreendi... O importante não é chegar na frente... O
importante é chegar... Assim todos chegam...” (PINTO: 2020, 57).
O mundo-terra aparece
representado com curiosidade em conquistas tecnológicas que conduzem o leitor a
questionar o sentido delas para o bem-estar social. O sentido do automóvel
ensejando a violência no trânsito:
“– Automóvel é uma caixa de aço, em cima de quatro rodas. Tem
de vários tamanhos, e, conforme o tamanho, muda de nome: ônibus, caminhão,
carreta... Mas na rua é uma beleza só! Tem de duas rodas, também, que é a
motocicleta, e é mais radical ainda: o sujeito anda se equilibrando pra não
cair, a 200 quilômetros por hora...
– Vamos brincar de rua da terra? Um dos meninos sugere e
recebe imediato apoio do grupo. O Menino-terra, cujo nome verdadeiro ninguém
nunca soube, pois desde o primeiro momento que o viram assim o chamaram,
organiza a brincadeira:
– É assim, ó... Cada um de nós é um carro, ou uma
motocicleta... A gente tá numa rua lá da terra, aí quem for mais forte vai em
frente e vai derrubando os outros, entenderam? Isso é o trânsito numa cidade lá
da terra...” (PINTO:
2020, 26-27).
“A cidade perdida dos
meninos-peixes”, de Zemaria Pinto, é um convite à reação contra as imposições
da sociedade de consumo sobre as crianças. Uma provocação que faz acreditar na
importância de conceitos universais sagrados para a construção de um mundo
melhor. Referenda-se, assim, um postulado valioso, capaz de resumir a função
social da obra:
“Os valores da liberdade, tolerância ou defesa de uma vida
individual prazerosa fazem com que a literatura infantil e juvenil se dirija a
enfrentar qualquer forma de poder autoritário: a denunciar as formas de
alienação e exploração da sociedade industrial moderna; a reivindicar tanto a
vida rural quanto aquela própria de culturas não industriais, como a harmonia
com a natureza, e a defender os setores socialmente débeis ou diferentes
(pessoas imigrantes, exploradas ou de raças minoritárias (sic))” (COLOMER:
2017,203).
Conclui-se sobre “A
cidade perdida dos meninos-peixes”, de Zemaria Pinto, que:
“As formas de vidas geradas pela sociedade são amplamente
rechaçadas por causa dos problemas de agressão que terminam em uma tríplice
direção: agressão a seus próprios cidadãos alienados, explorados ou oprimidos,
à natureza arrasada e a outras raças ou a culturas aniquiladas” (idem, ibidem).
(*)Dílson Lages Monteiro é autor de diversas obras de ficção, entre as
quais, O Pássaro Amarelo de Sol e o Agasalho do Vento (Nova Aliança, 2021).
Referências:
COLOMER, Teresa. Introdução à literatura infantil e juvenil atual (tradução Laura
Sandroni). São Paulo: Global, 2017.
KOHAN, Sílvia Adela. Escrever para crianças. Tudo que é preciso
saber para produzir textos de literatura infantil. Belo Horizonte: Editora
Gutemberg, 2013.
PINTO, Zemaria. A cidade perdida dos meninos-peixes. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2020.