Amigos do Fingidor

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Uma tragédia anunciada

 Zemaria Pinto

 

Raul Pompeia (1863-1895) pontuou sua vida pelo distanciamento dos padrões. Um clichê bem ao gosto dos historiadores da literatura brasileira é que O Ateneu (1888) não se enquadra em escolas – não é realista, tampouco naturalista; seria impressionista? simbolista? talvez, quem sabe, expressionista? O que ninguém nega é que O Ateneu é um dos grandes romances em língua portuguesa do século XIX. Morto aos 32 anos (negando o padrão, suicidou-se), Pompeia deixou obra de pequeno volume, mas iniciada cedo: este Uma tragédia no Amazonas, publicado em 1880, teria sido escrito quando o autor contava apenas 15 anos. Registre-se que o livro, na sua primeira edição, traz como subtítulo “ensaio literário”, como se o jovem autor pedisse desculpas pela ousadia.

A recepção de Capistrano de Abreu, o mais importante crítico literário da época, foi um misto de cautela e generosidade, ao afirmar que Raul Pompeia, juntamente com Aluísio Azevedo, que recém publicara O mulato (1881), eram “os dois maiores romancistas da nova geração”. Mas o crítico não deixava de apontar falhas na obra – o desconhecimento “de visu” da geografia local e as “contaminações”, especialmente, do obidense Inglês de Sousa.[1] Para suprir esses defeitos, entretanto, sobrava e assombrava a imaginação do autor.   

A trama é simples: um casal – Eustáquio, pernambucano, subdelegado de polícia, e Branca, amazonense – vivendo em um sítio próximo à localidade de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Por cerca de dois anos eles são acompanhados, juntando-se à fabula outras personagens, como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de um filho do casal, ainda não batizado. Pela sua função policial, Eustáquio granjeia alguns inimigos, que, lentamente, preparam uma vingança contra ele – a tragédia anunciada no título. Anísio Jobim, tratando dos “descimentos”, no século XVIII,[2] refere-se a uma localidade chamada São João do Príncipe, às margens do rio Japurá, da qual não há vestígios atualizados. Mas por esse dado infere-se que o jovem Raul servia-se de mapas reais para estruturar seu enredo.  

Com um domínio narrativo que denota amadurecimento, fruto, certamente, de seu conhecimento não apenas da literatura ainda incipiente do Brasil, mas, sobretudo, dos franceses e portugueses, Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks, informações essenciais à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia” – todo o arcabouço narrativo encontra-se montado, permitindo os encaixes das minúcias. Nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Narrando em terceira pessoa e eventualmente “conversando” com o leitor – característica do “narrador onisciente intruso”, um expediente que viria a ser consagrado por Machado de Assis –, o narrador, usando as técnicas legitimadas pelo folhetim, mantém a tensão narrativa, de modo a prender o interesse e a atenção do leitor.

A violência que permeia Uma tragédia no Amazonas é por vezes atenuada com a poesia vívida das descrições da natureza, imaginada pelo autor: “poesia selvática”, para usar uma expressão do próprio. Há uma conexão muito forte com Canções sem metro (1900), publicado postumamente, poesia em prosa de clara extração simbolista, fortemente influenciada por Baudelaire. Observe-se este pequeno trecho, do capítulo “Quem persegue. Quem defende”:

 

A manhã estava triste. O sol empanado subia do nascente, clareando a paisagem com uns raios tímidos atirados de vez em quando por entre as nuvens que voavam, ora rasgadas em estreitas fitas, ora distendidas em amplos lençóis. Por sobre os píncaros arredondados das montanhas resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio.

 

Assim como aconteceria com O Ateneu, é difícil vincular Uma tragédia no Amazonas a uma escola literária. Romântico na forma – com seus diálogos por vezes artificiais e um excesso de adjetivos –, o conteúdo se distancia, procurando uma expressão até então desconhecida: era o Realismo que aflorava; e mais que isso, o Naturalismo, com suas teses que podem parecer racistas para o leitor contemporâneo, especialmente a crença de que o comportamento humano é uma herança genética, racial. Raul Pompeia ainda trazia em si a carga de mais de 300 anos de escravidão, promovida por uma elite branca e católica e ainda com laivos europeus – o que explica a posição desfavorável aos espanhóis na narrativa, posto que estes mantiveram por séculos desavenças sobre fronteiras com França e Portugal, países da simpatia do autor. Em síntese: os negros, escravos fugidos, agiam por instinto; os espanhóis, bandidos de ofício, por mera ambição. Aliás, o citado O mulato, publicado um ano depois, é considerado o marco inicial do Naturalismo no Brasil. Não seria leviano afirmar que o jovem Raul Pompeia, anos antes, encontra o seu zeitgeist, o espírito do seu tempo, “inventando”, no Brasil, o mesmo que os jovens europeus descobriam por lá.

A favor de Pompeia, é preciso dizer que a literatura não caminha de mãos dadas com a teoria literária; antes, esta é que corre atrás para explicar aquela. Porque é fato que os grandes autores estão sempre à frente de seu tempo – e das teorias que os explicam. Em boa hora, Uma tragédia no Amazonas, enriquecido pelas ilustrações de Hadna Abreu, é tirado do limbo das obras esquecidas para ganhar a atenção de uma nova geração de leitores.

 

Prefácio a Uma tragédia no Amazonas, de Raul Pompeia –

Manaus: Reggo, 2020.

O livro pode ser adquirido na Amazon ou na Umlivro (clique no link).





[1] Apud MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira, vol. IV (1877-1896). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1979.

[2] JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história (ensaio antropogeográfico e político). Col. Brasiliana, vol. 292. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.