Zemaria Pinto
Raul Pompeia (1863-1895) pontuou sua vida
pelo distanciamento dos padrões. Um clichê bem ao gosto dos historiadores da
literatura brasileira é que O Ateneu (1888) não se enquadra em escolas –
não é realista, tampouco naturalista; seria impressionista? simbolista? talvez,
quem sabe, expressionista? O que ninguém nega é que O Ateneu é um dos
grandes romances em língua portuguesa do século XIX. Morto aos 32 anos (negando
o padrão, suicidou-se), Pompeia deixou obra de pequeno volume, mas iniciada
cedo: este Uma tragédia no Amazonas, publicado em 1880, teria sido
escrito quando o autor contava apenas 15 anos. Registre-se que o livro, na sua
primeira edição, traz como subtítulo “ensaio literário”, como se o jovem autor
pedisse desculpas pela ousadia.
A recepção de Capistrano de Abreu, o mais
importante crítico literário da época, foi um misto de cautela e generosidade,
ao afirmar que Raul Pompeia, juntamente com Aluísio Azevedo, que recém
publicara O mulato (1881), eram “os dois maiores romancistas da nova
geração”. Mas o crítico não deixava de apontar falhas na obra – o
desconhecimento “de visu” da geografia local e as “contaminações”,
especialmente, do obidense Inglês de Sousa.[1] Para suprir esses defeitos,
entretanto, sobrava e assombrava a imaginação do autor.
A trama é simples: um casal – Eustáquio, pernambucano, subdelegado de polícia, e Branca, amazonense – vivendo em um sítio próximo à localidade de São João do Príncipe, no rio Iapurá. Por cerca de dois anos eles são acompanhados, juntando-se à fabula outras personagens, como o padre Jorge, a órfã Rosalina, os franceses Henrique e Octavio, além de um filho do casal, ainda não batizado. Pela sua função policial, Eustáquio granjeia alguns inimigos, que, lentamente, preparam uma vingança contra ele – a tragédia anunciada no título. Anísio Jobim, tratando dos “descimentos”, no século XVIII,[2] refere-se a uma localidade chamada São João do Príncipe, às margens do rio Japurá, da qual não há vestígios atualizados. Mas por esse dado infere-se que o jovem Raul servia-se de mapas reais para estruturar seu enredo.
Com um domínio narrativo que denota
amadurecimento, fruto, certamente, de seu conhecimento não apenas da literatura
ainda incipiente do Brasil, mas, sobretudo, dos franceses e portugueses,
Pompeia vai aos poucos fornecendo, em flashbacks, informações essenciais
à trama, até que, no capítulo final – “A tragédia” – todo o arcabouço narrativo
encontra-se montado, permitindo os encaixes das minúcias. Nenhum ponto fica sem
seu respectivo nó. Narrando em terceira pessoa e eventualmente “conversando”
com o leitor – característica do “narrador onisciente intruso”, um expediente que
viria a ser consagrado por Machado de Assis –, o narrador, usando as técnicas legitimadas
pelo folhetim, mantém a tensão narrativa, de modo a prender o interesse e a
atenção do leitor.
A violência que permeia Uma tragédia no
Amazonas é por vezes atenuada com a poesia vívida das descrições da
natureza, imaginada pelo autor: “poesia selvática”, para usar uma expressão do
próprio. Há uma conexão muito forte com Canções sem metro (1900),
publicado postumamente, poesia em prosa de clara extração simbolista,
fortemente influenciada por Baudelaire. Observe-se este pequeno trecho, do
capítulo “Quem persegue. Quem defende”:
A manhã estava triste. O sol empanado
subia do nascente, clareando a paisagem com uns raios tímidos atirados de vez
em quando por entre as nuvens que voavam, ora rasgadas em estreitas fitas, ora
distendidas em amplos lençóis. Por sobre os píncaros arredondados das montanhas
resvalavam massas de nevoeiro até se deixarem cair lento a lento pelas
quebradas. Por toda a parte reinava o silêncio.
Assim como aconteceria com O Ateneu,
é difícil vincular Uma tragédia no Amazonas a uma escola literária.
Romântico na forma – com seus diálogos por vezes artificiais e um excesso de
adjetivos –, o conteúdo se distancia, procurando uma expressão até então desconhecida:
era o Realismo que aflorava; e mais que isso, o Naturalismo, com suas teses que
podem parecer racistas para o leitor contemporâneo, especialmente a crença de
que o comportamento humano é uma herança genética, racial. Raul Pompeia ainda
trazia em si a carga de mais de 300 anos de escravidão, promovida por uma elite
branca e católica e ainda com laivos europeus – o que explica a posição
desfavorável aos espanhóis na narrativa, posto que estes mantiveram por séculos
desavenças sobre fronteiras com França e Portugal, países da simpatia do autor.
Em síntese: os negros, escravos fugidos, agiam por instinto; os espanhóis,
bandidos de ofício, por mera ambição. Aliás, o citado O mulato,
publicado um ano depois, é considerado o marco inicial do Naturalismo no
Brasil. Não seria leviano afirmar que o jovem Raul Pompeia, anos antes,
encontra o seu zeitgeist, o espírito do seu tempo, “inventando”, no
Brasil, o mesmo que os jovens europeus descobriam por lá.
A favor de Pompeia, é preciso dizer que a
literatura não caminha de mãos dadas com a teoria literária; antes, esta é que
corre atrás para explicar aquela. Porque é fato que os grandes autores estão
sempre à frente de seu tempo – e das teorias que os explicam. Em boa hora, Uma
tragédia no Amazonas, enriquecido pelas ilustrações de Hadna Abreu, é
tirado do limbo das obras esquecidas para ganhar a atenção de uma nova geração
de leitores.
Prefácio a Uma tragédia no Amazonas,
de Raul Pompeia –
Manaus: Reggo, 2020.
O livro pode ser adquirido na Amazon ou na Umlivro (clique no link).