Amigos do Fingidor

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

A poesia é necessária?

 

A caranguejeira feliz

Thiago de Mello (1926-2022)

 

Estão afáveis os ferrões da aranha

pousada na madeira da manhã.

Caçadora noturna, ela está imóvel,

as pernas cabeludas estendidas.

Chego mais perto: dorme fatigada

sob o possante resplendor do dia.

Cada pêlo é um olho, e em cada olho

um brilho denso de felicidade.

 

Sobre a parede de maçaranduba,

na luz da antemanhã, antes a vira:

tinha o dorso coberto por um corpo

em tudo igual ao seu, só que mais negro.

Maravilhado vi: eram lentíssimos

os movimentos, sombra sobre sombra,

suavidades. No abraço vertical,

o amante delicado lhe agradava

os flancos com as patas eriçadas.

Deixei os dois na paz feita de fúria

no sonoro silêncio da floresta.

 

Ferrões afáveis, pernas distendidas,

indiferente à claridão, a aranha

amazônica dorme, e talvez sonhe

com quem feliz a fez antes da aurora.