Amigos do Fingidor

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A poesia é necessária?

Visão de São Paulo à noite

Poema Antropófago sob Narcótico


Roberto Piva (1937-2010)

  

Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas

          acende velas no meu crânio

há místicos falando bobagens ao coração das viúvas

e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo

fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes

          chupando-se como raízes

 

Maldoror em taças de maré alta

na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida

a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria

          feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas

          definitivamente fantásticas

há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo

a lua não se apoia em nada

eu não me apoio em nada

 

sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas

teorias simples fervem minha mente enlouquecida

há bancos verdes aplicados no corpo das praças

há um sino que não toca

há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios

reino-vertigem glorificado

espectros vibrando espasmos

 

beijos ecoando numa abóbada de reflexos

torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos

         enlouquecidos na primeira infância

os malandros jogam ioiô na porta do Abismo

eu vejo Brama sentado em flor de lótus

Cristo roubando a caixa dos milagres

Chet Baker ganindo na vitrola

 

eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas

         partidas do meu cérebro

eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes

         vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e

         abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos

         colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror

disparo-me como uma tômbola

a cabeça afundando-me na garganta

 

chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me

nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado

quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas

ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,

         correrias de maconha em piqueniques flutuantes

vespas passeando em volta das minhas ânsias

meninos abandonados nus nas esquinas

angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos

         entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto

                            e o Estrondo