Amigos do Fingidor

sexta-feira, 24 de junho de 2022

“Amor e Capital”: a vida íntima da Revolução

 Zemaria Pinto


Não há clichê mais adequado que “monumental” para classificar o trabalho de Mary Gabriel nas mais de 950 páginas de Amor e Capital. O subtítulo dado pela autora sintetiza o seu esforço: Karl e Jenny Marx e o nascimento de uma revolução. O casal e a revolução são, de fato, o centro da narrativa. A tradução trai esse sentido, generalizando-o: A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Ao subtrair o nome de Jenny, o tradutor minimiza o seu papel, da mesma forma como, ao trocar “nascimento” por “história”, ele subverte o sentido do texto de Mary Gabriel: sem arroubos, ela conta a gênese da revolução pensada por Marx, uma história que está longe de terminar.

O livro cobre exatos 80 anos, de 1831 até 1911. A vida íntima do casal Marx é uma sucessão de tragédias – desde a perda de quatro filhos e quatro netos, ainda crianças, até o suicídio de duas das três filhas sobreviventes. Mas, a maior de todas as tragédias é a crônica falta de recursos da família, amparada pelo amigo Friedrich Engels, que tem um papel fundamental na construção da obra de Marx, não só como parceiro e revisor, mas, principalmente, como patrocinador do amigo.

Na foto da capa, o casal Marx.

Amor e Capital[1] pode ser lido como um romance – ora tributário de Balzac ora de Zola –, com histórias de amor e desencontros, adultérios e traições, brigas e reconciliações, mentiras e calúnias (nomes antigos para fake news), além de toques de comédia, para distender o clima trágico que ameaça o tempo todo a antecipação de entrechos paralelos. Vejamos as principais personagens, a família Marx, núcleo da narrativa, de onde Engels era parte indissociável. 

Johanna Bertha Julie Jenny von Westphalen Marx (Jenny, 1814-1881) vinha de uma família de nobres prussianos. O barão Von Westphalen, seu pai, um liberal, foi professor de Karl, que era amigo de um irmão mais novo de Jenny, Edgar. Essa amizade aproximou o futuro casal, apesar da diferença de idade: Jenny era quatro anos mais velha. Secretamente, ficaram noivos em 1836, mas o casamento só aconteceria sete anos mais tarde, após Karl concluir o doutorado e acenar com alguma estabilidade financeira, que nunca se concretizaria. Jenny passou por muitas atribulações ao lado de Marx, mas manteve-se firme até o fim. A frase a seguir pode parecer machista, mas é verdadeira: o papel de Jenny Marx – como esposa, mãe e administradora da vida familiar – foi fundamental para que o trabalho do marido fosse levado a cabo e se tornasse um marco do pensamento na filosofia, na economia, na política e nos estudos sociais.   

Karl Heinrich Marx (Mohr, 1818-1883) descendia de uma linhagem de pensadores judeus, cuja autoridade em religião se estendia à política, segundo a autora. Seu pai, entretanto, advogado, converteu-se ao cristianismo luterano. O apelido doméstico que o acompanharia a vida inteira – Mohr, Mouro – foi adquirido em Berlim, onde fora estudar, como referência ao cabelo negro e à pele escurecida. Mary Gabriel não o poupa: “O primeiro ano de Marx na universidade foi mergulhado no álcool.” Mas, não apenas o primeiro ano. Marx é mostrado com todos os seus defeitos: desorganizado, dispersivo, mulherengo. Mas, como pontos positivos, pai e avô amoroso e, paradoxalmente, marido dedicado. Aliás, surpresa das surpresas, aos 18 anos ele convenceu Jenny a tornar-se sua noiva – ela que já passara por um noivado frustrado – com três volumes de poemas, guardados por Jenny e publicados, como curiosidade literária, somente após a morte de ambos. Mas, a maior virtude de Karl era a sua capacidade de transitar em várias matérias, para atingir o seu objetivo maior: construir uma teoria do capitalismo industrial, que, com sua previsível implosão, conduziria o proletariado ao poder.

Nascidos ambos em Trier – Tréveris, em Português –, a mais antiga cidade alemã, fundada, segundo a lenda, pelo próprio Octavio Augusto, no século 1 a.C., o casal, escapando à censura e à polícia política, viveu em Paris e Bruxelas antes de se fixar em Londres. As casas dos três países onde moraram se tornaram uma espécie de consulado socialista, onde todas as tendências de refugiados encontravam abrigo. Marx não foi apenas um teórico: apesar de sua inabilidade política, esteve sempre à frente dos movimentos sociais, especialmente na França e na Inglaterra, entre os anos 1840 e 1870.  Não à toa, era chamado pelos seus detratores de “Doutor Terrorista Vermelho”.

Jenny Caroline Marx Longuet (Jennychen, 1844-1883), a filha mais velha do casal Marx, foi casada com Charles Longuet, jornalista revolucionário francês. Trabalhou para o pai como secretária, atuando também como jornalista, especialmente na defesa da liberação de presos políticos irlandeses de prisões inglesas. Morreu muito jovem, de câncer, deixando três filhos, criados pelas irmãs.

Jenny Laura Marx Lafargue (Laura, 1845-1911), segunda filha do casal Marx, foi tradutora dos livros do pai e de Engels. Casou-se com Paul Lafargue, de origem franco-cubana, ativista, introdutor do marxismo na França e na Espanha. Tiveram três filhos, todos falecidos em tenra idade. Em 1911, num aparente pacto, ambos se suicidaram. No funeral, um orador destacou-se: “Lutem. Lutem sempre. Até chegar naquilo que foi antevisto por estes mortos – a vitória do proletariado.” Era um revolucionário russo no exílio, Vladimir Ilyich Ulianov, que assombraria o mundo seis anos depois com o codinome Lênin.

Jenny Julia Eleanor Marx (Tussy, 1855-1988), a caçula do casal Marx, era a mais inquieta das três: tendo trabalhado como secretária e tradutora do pai, ansiava por independência financeira. Trabalhou como atriz, traduziu Flaubert e Ibsen, atuou como jornalista e ativista. Suicidou-se, ao descobrir que seu companheiro Edward Aveling, que era dramaturgo, casara-se com uma atriz mais jovem. Não teve filhos. Sobre as filhas, Marx declarou em certa ocasião que Jennychen era a mais parecida com ele; mas, Tussy era ele.

Da esquerda para a direita: Jennychen, Tussy e Laura,
sob a guarda do Mouro e do General, em 1864.

Friedrich Engels (General, 1820-1895). O apelido doméstico foi atribuído pela adolescente Jennychen, por ocasião da guerra franco-prussiana, que deu origem ao império alemão, em 1870-1871, sobre a qual Engels escreveu cerca de sessenta artigos, que circularam por toda a Europa, alcançando até os Estados Unidos.

É lugar comum dizer que sem Engels não haveria marxismo. Talvez, nem Marx. Eles se conheceram em 1844, e nem a morte os separou. Segundo Mary Gabriel,

Intelectualmente, ambos eram brilhantes, incisivos, visionários e criativos (mas também elitistas, beligerantes, impacientes e conspiratórios). Como amigos, eram desbocados, grosseiros e adolescentes. Adoravam fumar (Engels, cachimbo; Marx, charuto), beber até de madrugada (Engels, bons vinhos e cervejas; Marx, qualquer coisa disponível), bisbilhotar (especialmente sobre as tendências sexuais de seus conhecidos) e gargalhar muito alto (geralmente à custa dos inimigos, e no caso de Marx, até lhe correrem lágrimas pela face).

Unia-os ainda a história, a filosofia e a economia. Ambos acreditavam que o capitalismo não se sustentaria, pois era arquitetado sobre um terreno alagadiço, ou, como dizemos hoje, bolhas econômicas que geram crises mundiais a cada estouro. Ambos acreditavam que a classe operária, por ser maioria, um dia tomaria o poder. Ambos acreditavam que o futuro da humanidade era o comunismo. Só um aspecto os diferenciava: Engels, vindo de uma família rica, era um rico empresário da indústria têxtil; Marx, doutor em filosofia, vivia de parcos recursos como jornalista político, sem nenhuma garantia de ter o que comer no dia seguinte. Engels foi o provedor da família, enquanto viveu, socorrendo o amigo em permanente estado de necessidade – e, depois, as duas filhas sobreviventes. Mas, Engels dizia que não fazia isso gratuitamente: ele tinha consciência de que a obra que Marx estava construindo valeria mais que tudo o que gastava. E ele estava certo.

Escreveram vários livros juntos e os livros-solos eram revisados criticamente pelo outro. Mas, o principal deles, O Capital, o livro que “mudou a consciência do mundo”, no dizer de Bernard Shaw, só teve um tomo publicado em vida por Marx (1867). O segundo e o terceiro foram “editados” por Engels, a partir de anotações deixadas pelo caótico Marx. Há ainda um quarto tomo, que Engels não teve tempo de finalizar, entregando-o à edição de um terceiro, o jornalista e economista Karl Kautsky.

Um episódio emblemático entre os dois foi a paternidade do filho de Helene Demuth (Lenchen, 1820-1890), empregada dos Marx. Engels assumiu e a criança foi entregue para uma família de um subúrbio londrino, que a criou (provavelmente, subsidiada pelo suposto pai), tendo Lenchen permanecido com os Marx. Após a morte do casal, entretanto, a verdade veio à tona: o menino, Frederick Demuth (Freddy, 1851-1929), que se tornara um ativista e seguidor da doutrina comunista, era filho de Karl Marx.

Das Kapital é uma obra coletiva. Além de Marx, que o escreveu, e Engels, que o revisou e editou, teve a participação fundamental de Jenny, a esposa, mas também de Jennychen, Laura e Tussy, as filhas. E não podemos nos esquecer de Lenchen, sempre calada e presente. Cada uma dessas mulheres deu sua contribuição, sua cota de sacrifício, para que a obra de toda uma vida se tornasse um livro transformador – e atual, mais de 150 depois – e não apenas uma interpretação para uso intelectual ou histórico. A revolução – política, social e econômica – era seu único objetivo.

O Capital aponta, no berço de nascimento do capitalismo moderno, suas falhas e seu declínio, porque assentado nas mesmas bases dos sistemas econômicos que o antecederam: os ricos explorando os pobres. O livre mercado, de que os economistas liberais tanto se jactavam, era apenas um mercado controlado pelos ricos, em benefício deles mesmos, os ricos. E assim continua. Por esse ângulo, a luta de classes é transparente e seu acirramento é necessário. Marx ecoava Hegel, para quem a história humana é a história de seus conflitos. Para Engels, se o contemporâneo Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, “Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana.” A revolução proposta por Marx tem uma premissa fundamental: nenhum homem tem o direito de explorar outro homem. E porque as relações entre as pessoas são basicamente materiais, de fundo econômico, a força motriz da revolução se resume em uma palavra: pão.   

Marx sabia do que falava:

Deve haver algo de podre no cerne de um sistema social que aumenta sua riqueza sem diminuir sua miséria.

E foi investigando as causas dessa distorção que Marx descreveu a ascensão e a queda do capitalismo – da “economia global” às bolhas causadas pelo consumo desenfreado a impor necessidades artificiais que o trabalhador assalariado não pode suprir, porque ele não passa de mão de obra escravizada pelo salário de fome, e duplamente escravizada pelo crédito, indispensável para o consumo que retroalimenta a Hidra de Lerna de nosso tempo.

A revolução seria lenta: redução da carga horária e um salário capaz de manter o trabalhador de pé, alimentando também sua família, seriam apenas os primeiros passos. Para Marx, a “utopia comunista”, como ironizavam seus adversários, só seria alcançada após os trabalhadores adquirirem o direito a se alimentarem com dignidade. Era preciso comer para depois sonhar.

Mas, o livro máximo do socialismo não pode ser visto como uma suma dogmática, baseada em preceitos imutáveis. É preciso analisá-lo dentro de seu contexto histórico. Expressões como “ditadura do proletariado”, por exemplo, serviram como justificativa para a repressão política e policial, desde sempre. Em 1895, poucos meses antes de sua morte, o dedicado Engels deu sua última contribuição ao amadurecimento do marxismo, na Introdução à uma nova edição de um dos textos mais populares de Marx, As lutas de classes na França, relembrando a campanha épica do movimento de 1848-1849, quando os dois amigos estiveram na vanguarda dos acontecimentos. Engels, fazendo uma autocrítica do movimento no que lhe dizia respeito, escreve a respeito de uma “nova arma poderosa” à disposição do proletariado: o sufrágio universal. E sem abrir mão do “direito à revolução”, ele pondera que a mudança da conjuntura pede a adaptação das formas de luta: “[O sufrágio universal] é um instrumento mais aborrecido e lento para a promoção da revolução, mas é dez vezes mais seguro; e sobretudo indica com precisão o dia em que se deve empunhar armas pela revolução.” Àquela época o voto era apenas masculino. Nestes mais de 120 anos que nos separam da reflexão de Engels, muita coisa mudou – e mudou a favor da classe pela qual Marx e Engels dedicaram todas as suas forças.

 

Jenny e Karl Marx morreram sem ver o alcance da obra que realizaram. Mas, o sacrifício da família e do amigo Engels não foi em vão: O Capital transformou o mundo, mudando a maneira de pensar da humanidade. Isso já foi uma revolução, mas o capitalismo continua forte, opressor, asfixiante. Embora invisível – especialmente, para quem não quer ver –, a luta de classes continua viva e necessária, e o voto é a principal arma para promover a transformação.




[1] GABRIEL, Mary. Amor e Capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Tradução: Alexandre Barbosa de Souza. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. 958 p.