Quando Umberto Eco colocou um MacGuffin para desviar a atenção dos assassinatos em O nome da rosa, não poderia ter imaginado melhor: um texto de Aristóteles sobre a comédia e, por extensão, sobre o riso. Infelizmente, era apenas um MacGuffin. Apesar de presente desde os mais remotos textos conhecidos, o cômico sempre foi tido, ao lado do feio, como inferior, subalterno. Mas, Sófocles e Eurípides, Dante e Rabelais, Cervantes e Shakespeare nunca deixaram de harmonizar com sabedoria o feio e o belo, o cômico e o trágico como constituintes de uma beleza una. No dezenove, os românticos, Victor Hugo na vanguarda, defenderam a premissa de que é da união do grotesco com o sublime que se engendra o moderno. Não à toa, Quasímodo e Rigoletto, dois grotescos exemplares, nasceram do sopro de Hugo.
Baudelaire e Augusto dos Anjos são exemplos extremos de
poesia que lança mão do grotesco para atingir a alma do leitor, lá onde os
olhos não alcançam. E que se dane o belo! Os “ismos” que surgiram na virada do
dezenove para o vinte tornaram o belo ridículo – acadêmico! Virou maldição. E
viva o grotesco, o deformado! E viva o feio!
O cômico vinha na carona dessa tendência, especialmente por
conta do cinema, que revelaria toda a tragicidade do cômico – Chaplin, Buster Keaton
e Harold Lloyd à frente.
A leitora, o leitor devem estar se perguntando: e a Bossa
Nova?
Pois na música popular brasileira não aconteceu diferente: a
música de humor é uma categoria ainda enjeitada, a despeito de uma verdadeira
legião de cultores do gênero, que vai de Noel Rosa a Roberto Carlos,
Pixinguinha a Chico Buarque, Adoniran Barbosa a Zeca Baleiro, passando por Moreira
da Silva, Billy Blanco, Juca Chaves, Raul Seixas, Rita Lee e Mamonas Assassinas. Aliás, este
é um tema a ser desenvolvido: “De Donga a Nicolas Jr, o humor na emepebê”.
Assim como a literatura e as artes plásticas – incluindo as
charges, o cartum e a caricatura –, a música cômica pode ser arte, para além
dos preconceitos: crônicas (quantos sambas são feitos como crônicas de
situações?), paráfrases e paródias. Ou invenções fora de série, como é o caso
de Bossa’n’humor, que transborda
conexões por todo lado, numa autêntica autoafirmação de vitalidade, nesta
geleia geral que é a – com o perdão da má palavra – pós-modernidade!
Bossa’n’humor é o primeiro álbum solo de Carlos
Castelo, escritor múltiplo e compositor idem, remanescente do Língua de
Trapo, que – ao lado do Premeditando o Breque – formou na linha mais
avançada da Vanguarda Paulistana, nos anos 1970/1980. Para quem nunca ouviu
falar dos dois grupos, a leitura dos nomes é suficiente para explicar o gênero
que ambos adotavam – cada um do seu modo particular.
O álbum tem doze faixas – será que estou usando a terminologia
adequada, nestes tempos de absoluta virtualidade? –, o que pode ser
interpretado como uma paródia do número de faixas dos LPs antigos. Bobagem
minha. Mas, a capa, sim: Carlos parodia a carantonha de Joãozinho, no episódio
“vaia de bêbado não vale”, em 1999, que Tom Zé tão bem interpretou, em defesa
do (nosso) ídolo. “Viva Vaia”, como diria o “velhinho concreto”.
Bossa’n’humor dialoga com
João Gilberto, Tom Jobim e Astrud Gilberto – raízes da Bossa Nova – mas, também
com Adoniran Barbosa, Tom Zé, Vinicius de Moraes, entre outros.
Logo na primeira faixa, um
inusitado e feliz casamento entre a bossa nova de Carlos Castelo e Tony Pituco
(seu parceiro em dez faixas) e a poesia de Décio Pignatari: a clássica “Beba
Coca-Cola” (1957), onde uma superposição de vozes dá uma nova dinâmica ao poema,
revitalizando o discurso concreto.
“Bossampa” explora as diferenças
entre as cidades: Rio de Janeiro, solar e multicor; São Paulo, neurótica e dominada
pelo cinza. Mas, se “bossa nova em São Paulo é um desvio”, é sempre possível
cantar, ecoando Tom Zé: “São São São Paulo”.
Interpretação dividida com Carlos
Careqa, “Psicossamba” brinca com a neurose de “Bossampa” e faz um inventário,
de Freud a Lacan, de diagnósticos possíveis para explicar um “amor tão maluco”:
“transferência”, “sincronicidade”, “questão de encaixe” e por aí vai.
“Benê” é um delicado diálogo com o
mestre Adoniran Barbosa, de “Pode apagar o fogo, Mané”. Em Adoniran, Inês sai
para comprar pavio pro lampião e deixa um bilhete para o marido com o texto do
título. Em Carlos Castelo, a mulher fala para o marido: “acabou o gás, Benê,
desse jeito eu não aguento”. E o solícito Benê sai atrás de comprar gás...
Estava armado o desencontro.
Em “Breque do Guioza”, de Tony
Pituco e Rogério Santos, Castelo divide o vocal com o parceiro Pituco. É uma
ponte entre a Liberdade, bairro japonês no centro de São Paulo, e o Japão, onde
mora Pituco. Uma “bossa massa”.
Com o auxílio luxuoso de André
Abujamra, “Bossa Sucks” emula o sucesso do gênero fora do Brasil, a partir de
uma paródia do refrão clássico de João Gilbero: “bim bom bim bim bom...” E
assim como o baião de João era só isso, a “bossa sucks” de Castelo joga com os
clichês de uma bossa nova para americano ouvir.
A Bossa Nova cristalizou uma ideia
de movimento alienado da realidade brasileira. Apesar da euforia
desenvolvimentista de JK, o Brasil da Bossa Nova sofria os mesmos problemas de
hoje, com desemprego, fome, violência urbana e tragédias naturais evitáveis.
Mas, em nenhum momento, as canções refletem isso. O resultado é que a onda que
se ergueu após a Bossa Nova foi a da música de protesto, com a participação de
muitos bossanovistas, como Nara Leão, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra.
É nessa ferida que “Posto 6” põe o
dedo. Começa que a referência geográfica sai de São Paulo e vai de mala e cuia,
como dizemos por aqui, para Copacabana – embora o arranjo remeta a “Garota de Ipanema”. É
como se Tom Jobim e Newton Mendonça fizessem uma canção nova, hoje: um novo
“Desafinado”. Nada de amor, sorriso e flor, beijinhos e carinhos, barquinho ou
banquinho. O desafio é encarar “um festival de balas perdidas”. O refrão de
Joãozinho retorna, simulando rajadas: “bim bom bom bim bom bom...” Contraindicado
a fãs intolerantes.
“Por que túmulo do samba?” A
imprecação de Vinicius – inesquecível graças à citação de Caetano, em “Sampa” –
ganha aqui uma justificativa. Após a exposição de um dia na vida de um
trabalhador, o que resta a ele, senão... fazer hora-extra? Conclusão anti-adoniraniana:
“me diga, meu bamba, a que hora nóis vai fazê samba?”
O Expressionismo é a síntese
daquilo que os nazistas consideravam “arte degenerada”. Desde meados do
dezenove, o “belo puro” passara a ser considerado ultrapassado: a arte deveria conciliar
os extremos entre o grotesco e o sublime. (Acho que já falamos disso hoje...) É
sobre isso que trata a faixa “Expressionismo”, em que se exalta a beleza
feminina a partir de suas particularidades... feias: o períneo, as sardas, os dedões,
os culotes, os joanetes, as orelhas.
Talvez pela presença emblemática de
Vânia Bastos e sua voz personalíssima, “cochichando as palavras no ouvidinho” –
provavelmente, para o Benê, lá da quarta faixa –, “Hã?” é a canção mais
elaborada, letra e melodia em perfeita harmonia, sem perder a graça da
situação: como o marido não a escuta, ela ameaça fugir com o vizinho – o gás
estava no fim. Joãozinho cantaria.
“Todo mundo é carioca”, interpretado
em parceria com o paulista Paulo Caruso, o irmão do Chico, brinca com o jeito
de ser do carioca, inclusive o modo de falar. Carioca Zona Sul, claro.
Parceria entre Carlos Castelo
(quando ainda se assinava Melo) e Cassiano Roda, “Concheta” é um clássico do Língua
de Trapo. Dialogando com o “Samba Italiano”, do onipresente Adoniran, é cantado
num italiano macarrônico, o que potencializa o efeito cômico.
Há dois anos, Leila Pinheiro, Rodrigo Santos e o mago Menescal gravaram um álbum – Faz parte do meu show: Cazuza em Bossa – em que recuperam a Bossa Nova pulsante do compositor desaparecido em pleno amadurecimento. Até agora, era o que havia de mais “diferente”, além do repertório clássico – incluindo a gravação de João para “Me chama”, de Lobão. Bossa’n’humor pode ser vista como uma homenagem bem-humorada à Bossa Nova, nos seus mais de 60 anos, mas também como uma revisão crítica do gênero, atualizando-a para o nosso tempo. Quem ouvir verá.
PS: Bossa’n’humor pode ser ouvido integralmente no
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