Amigos do Fingidor

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Primeiro de abril

Zemaria Pinto


Primeiro de abril de 1964. O dia começou como todos os outros dias: às cinco horas, meu pai, tocou os lábios no meu rosto. Senti o roçar da barba por fazer e o hálito quente de café. Esse gesto clandestino era o máximo de carinho que ele se permitia. Mamãe já agitava na cozinha. Olhei pelas frestas, tudo escuro, voltei a dormir. Quer dizer, achava que estava acordado, mas quando senti a rede balançando e ouvi meu nome, tive certeza de que dormira. Isso também acontecia todo dia, e uma hora se passara. Às seis e meia, havia tomado café com leite, acompanhado de meio pão com manteiga – igual a todos os dias. Esperava Emília, vizinha da frente, dois anos mais velha, para irmos juntos. Às vésperas dos sete anos, eu não tinha autonomia para ir sozinho à escola, no mesmo bairro, mas a uns vinte minutos de caminhada.

Para alegria geral, a escola estava fechada. O filho da diretora, por trás do muro, falando em “revolução”, avisava que não haveria aula – e nem se deu o trabalho de abrir o portão. Os mais velhos começaram a dizer que era brincadeira de “primeiro de abril”. Palheta, um garoto meio indígena, meio negro, de uns dez anos, dotado de um talento extraordinário para o desenho, começou a fazer esboços do que seria a revolução, juntando um monte de moleques ao seu redor. O rapaz por trás do muro, um quase adolescente imbuído de súbita responsabilidade, dizia que não era “primeiro de abril” coisa nenhuma e que deveríamos retornar direto para casa. Que pena, um dia sem ver D. Ana, minha professora, que também era filha da diretora.

A manhã transcorreu sem nenhuma novidade, salvo algumas palavras ouvidas em fragmentos de conversas adultas: general, tropas, soldados, quartel, exército... À tarde, quando o vizinho da direita, que era policial militar, chegou em casa, o rádio foi colocado num volume estranhamente alto – mas não se ouviam músicas, apenas o noticiário. Eu não entendia porque aumentar o volume se não havia música tocando. E o vizinho passava de uma estação para outra. Perguntei à mamãe porque o vizinho estava ouvindo aquilo. Isso não é coisa de criança, vai brincar – foi o que ela respondeu e eu prontamente atendi.

Depois das cinco da tarde, já de banho tomado e roupa trocada, sentei-me no banco em frente de casa, para esperar papai. Era um ritual cotidiano. Eu o via dobrando a General Glicério – vindo da visita diária à vovó –, e pegando a nossa rua, Manicoré. Então, corria ao seu encontro e ele me entregava os jornais do dia – O Jornal, matutino, e Diário da Tarde, vespertino. Exceto pelo domingo, em que ele, fazendo o mesmo trajeto, chegava por volta do meio-dia, trazendo o Jornal do Comércio. Aqueles jornais foram minhas primeiras leituras e, por muito tempo, únicas.

Mas, naquela quarta-feira, eu vi descer a noite e meu pai não chegou. Não existia iluminação na rua e não era noite de lua. Mal se distinguiam os vultos, em contraste com as luzes domésticas de candeeiros e lamparinas a querosene, a maioria. Cada nova silhueta que eu divisava era uma esperança renovada. O rádio do vizinho baixara até o inaudível: havia crianças, bem mais novas que eu, e o pai delas estava em casa. Mamãe foi até meu posto diversas vezes. Passava das sete quando ordenou que eu entrasse. Precisa jantar, teu pai já vem, ela disse sem nenhuma convicção. Quando percebi que mamãe chorava, empurrei o prato de sopa de batata e fui para a janela, de onde se viam uns 30 metros de rua, na escuridão, salvo pelas eventuais lanternas de raros transeuntes. Papai não tinha lanterna.

Próximo às dez da noite – eu olhava o velho despertador a corda, a cada instante –, eu tive certeza de ver papai se aproximando. Tomado de inédita euforia, saí correndo ao seu encontro. Devo ter gritado ou feito muito barulho, porque mamãe saiu logo atrás. Mas, a alegria logo se tornou em tristeza: papai sentou-se à mesa de jantar, cabisbaixo, pediu água do pote e começou a explicar a camisa suja e rasgada, o olho esquerdo roxo e os arranhões nos braços e no peito. Na confusão, os jornais do dia se perderam.

Neste ponto, não sei se reproduzo o que ouvi naquela noite ou o que ouviria tantas vezes depois. Em síntese: militares tiraram o presidente da república de nome engraçado – Jango. Era esperado que o governador Plínio também fosse sacado, pois eram do mesmo partido. O centro da cidade fora ocupado – o mercado, onde meu pai trabalhava, o porto, a área onde funcionavam a prefeitura e as casas legislativas, até o palácio Rio Negro, sede do governo estadual. Os ônibus não puderam circular nessa área, indo somente até a Praça da Saudade. O comércio do Centro fora fechado. As pessoas que chegaram cedo para trabalhar não podiam voltar, classificadas como “suspeitas”, e as que ousaram questionar foram espancadas. Parece que o general comandante queria o governador, que estava fora da cidade, e, não conseguindo, resolveu castigar os trabalhadores, que ameaçaram com greve geral para o dia seguinte. Mas, não teve greve. E, por uma semana, não teve aula.

 

No ano seguinte, comemoraram o primeiro aniversário da “revolução” no dia 31 de março. Alguns, comemoram até hoje. Mas, a mim nunca enganaram: o golpe militar – que interrompeu o processo democrático por vinte e um anos e torturou e assassinou centenas de brasileiros – aconteceu mesmo, de fato, no dia da mentira. E eu fui testemunha.