Zemaria Pinto
Primeiro
de abril de 1964. O dia começou como todos os outros dias: às cinco horas, meu
pai, tocou os lábios no meu rosto. Senti o roçar da barba por fazer e o hálito
quente de café. Esse gesto clandestino era o máximo de carinho que ele se
permitia. Mamãe já agitava na cozinha. Olhei pelas frestas, tudo escuro, voltei
a dormir. Quer dizer, achava que estava acordado, mas quando senti a rede
balançando e ouvi meu nome, tive certeza de que dormira. Isso também acontecia
todo dia, e uma hora se passara. Às seis e meia, havia tomado café com leite,
acompanhado de meio pão com manteiga – igual a todos os dias. Esperava Emília, vizinha
da frente, dois anos mais velha, para irmos juntos. Às vésperas dos sete anos,
eu não tinha autonomia para ir sozinho à escola, no mesmo bairro, mas a uns
vinte minutos de caminhada.
Para
alegria geral, a escola estava fechada. O filho da diretora, por trás do muro, falando
em “revolução”, avisava que não haveria aula – e nem se deu o trabalho de abrir
o portão. Os mais velhos começaram a dizer que era brincadeira de “primeiro de
abril”. Palheta, um garoto meio indígena, meio negro, de uns dez anos, dotado
de um talento extraordinário para o desenho, começou a fazer esboços do que
seria a revolução, juntando um monte de moleques ao seu redor. O rapaz por trás
do muro, um quase adolescente imbuído de súbita responsabilidade, dizia que não
era “primeiro de abril” coisa nenhuma e que deveríamos retornar direto para
casa. Que pena, um dia sem ver D. Ana, minha professora, que também era filha
da diretora.
A manhã
transcorreu sem nenhuma novidade, salvo algumas palavras ouvidas em fragmentos
de conversas adultas: general, tropas, soldados, quartel, exército... À tarde,
quando o vizinho da direita, que era policial militar, chegou em casa, o rádio
foi colocado num volume estranhamente alto – mas não se ouviam músicas, apenas
o noticiário. Eu não entendia porque aumentar o volume se não havia música
tocando. E o vizinho passava de uma estação para outra. Perguntei à mamãe
porque o vizinho estava ouvindo aquilo. Isso não é coisa de criança, vai
brincar – foi o que ela respondeu e eu prontamente atendi.
Depois
das cinco da tarde, já de banho tomado e roupa trocada, sentei-me no banco em
frente de casa, para esperar papai. Era um ritual cotidiano. Eu o via dobrando
a General Glicério – vindo da visita diária à vovó –, e pegando a nossa rua,
Manicoré. Então, corria ao seu encontro e ele me entregava os jornais do dia – O Jornal, matutino, e Diário da Tarde, vespertino. Exceto
pelo domingo, em que ele, fazendo o mesmo trajeto, chegava por volta do
meio-dia, trazendo o Jornal do Comércio.
Aqueles jornais foram minhas primeiras leituras e, por muito tempo, únicas.
Mas,
naquela quarta-feira, eu vi descer a noite e meu pai não chegou. Não existia
iluminação na rua e não era noite de lua. Mal se distinguiam os vultos, em contraste
com as luzes domésticas de candeeiros e lamparinas a querosene, a maioria. Cada
nova silhueta que eu divisava era uma esperança renovada. O rádio do vizinho
baixara até o inaudível: havia crianças, bem mais novas que eu, e o pai delas
estava em casa. Mamãe foi até meu posto diversas vezes. Passava das sete quando
ordenou que eu entrasse. Precisa jantar, teu pai já vem, ela disse sem nenhuma
convicção. Quando percebi que mamãe chorava, empurrei o prato de sopa de batata
e fui para a janela, de onde se viam uns 30 metros de rua, na escuridão, salvo
pelas eventuais lanternas de raros transeuntes. Papai não tinha lanterna.
Próximo
às dez da noite – eu olhava o velho despertador a corda, a cada instante –, eu
tive certeza de ver papai se aproximando. Tomado de inédita euforia, saí
correndo ao seu encontro. Devo ter gritado ou feito muito barulho, porque mamãe
saiu logo atrás. Mas, a alegria logo se tornou em tristeza: papai sentou-se à
mesa de jantar, cabisbaixo, pediu água do pote e começou a explicar a camisa
suja e rasgada, o olho esquerdo roxo e os arranhões nos braços e no peito. Na
confusão, os jornais do dia se perderam.
Neste
ponto, não sei se reproduzo o que ouvi naquela noite ou o que ouviria tantas
vezes depois. Em síntese: militares tiraram o presidente da república de nome
engraçado – Jango. Era esperado que o governador Plínio também fosse sacado,
pois eram do mesmo partido. O centro da cidade fora ocupado – o mercado, onde
meu pai trabalhava, o porto, a área onde funcionavam a prefeitura e as casas
legislativas, até o palácio Rio Negro, sede do governo estadual. Os ônibus não
puderam circular nessa área, indo somente até a Praça da Saudade. O comércio do
Centro fora fechado. As pessoas que chegaram cedo para trabalhar não podiam
voltar, classificadas como “suspeitas”, e as que ousaram questionar foram
espancadas. Parece que o general comandante queria o governador, que estava
fora da cidade, e, não conseguindo, resolveu castigar os trabalhadores, que
ameaçaram com greve geral para o dia seguinte. Mas, não teve greve. E, por uma
semana, não teve aula.
No ano
seguinte, comemoraram o primeiro aniversário da “revolução” no dia 31 de março.
Alguns, comemoram até hoje. Mas, a mim nunca enganaram: o golpe militar – que
interrompeu o processo democrático por vinte e um anos e torturou e assassinou
centenas de brasileiros – aconteceu mesmo, de fato, no dia da mentira. E eu fui
testemunha.